‘Vidas Secas’, um clássico do cinema brasileiro

Em 2018, o filme ‘Vidas Secas’ completa 55 anos de história. Rodada na segunda metade do século 20, a produção de Nelson Pereira dos Santos é fundamental para entender a cultura brasileira

Ao longe, um horizonte. Vegetação rasteira e seca, com apenas uma única árvore, igualmente desolada.

Longo tempo se passa, até que um pequeno grupo de pessoas surge, em meio a uma luz estourada. Eles andam de maneira lenta, sem rumo. Aos poucos, tem-se uma ideia melhor: trata-se de uma família perdida que se aproxima, tendo um cachorro à frente. O único som é seco e árido, semelhante ao barulho emitido pelo carro de boi.

Com pouco mais de 3 minutos de duração, essa abertura feita em um único plano-sequência (imagem sem cortes de câmera) se tornou uma das mais famosas do cinema brasileiro. Dirigido por Nelson Pereira dos Santos, o filme Vidas Secas entrou para a história em 1963 ao adaptar um clássico da literatura brasileira: o romance homônimo de Graciliano Ramos.

Em 2018, a produção de Santos completa 55 anos e o livro de Ramos, 80 anos. A temática sobre a indústria da seca que corrói milhões de brasileiros no Nordeste ainda continua contemporânea e comovente.

Tanto no filme quanto no livro, Vidas Secas conta a história de uma família formada por cinco integrantes: Fabiano, sinhá Vitória, menino mais velho, menino mais novo e a cachorra Baleia. Havia um papagaio, mas que foi devorado logo no início da narrativa. Afinal, os viventes precisavam se alimentar, tamanha era a fome até aquele momento.

Após a cena inicial de grande impacto visual, a família do vaqueiro Fabiano (Átila Iório) encontra um local para fixar residência, enquanto a chuva retorna ao sertão nordestino. Nesse meio tempo, o personagem consegue emprego e passa a ser explorado pelo Patrão (vivido pelo ator Jofre Soares) e depois pelo Estado.

As crianças, sinhá Vitória (Maria Ribeiro) e até mesmo a cachorra Baleia ganham momentos singelos durante a narrativa do filme. Assim como o livro, a versão cinematográfica também trata das agruras do homem; mas, claro, sem o mesmo mergulho na consciência das personagens feito na literatura de Graciliano Ramos.

Para muitos espectadores, o que salta aos olhos no filme é a denúncia das condições de exploração dos trabalhadores em um contexto de vantagens para quem ocupa as posições superiores, caso do Patrão e do Soldado Amarelo.

NEORREALISMO

Não por sinal, Nelson Pereira dos Santos é apontado como um dos grandes representantes da influência do Neorrealismo italiano no Brasil. Surgido na Europa após a Segunda Guerra Mundial, esse movimento cinematográfico encabeçado por nomes como Roberto Rosselini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti caracterizou-se pelo uso de elementos da realidade numa peça de ficção, aproximando-se até certo ponto, em algumas cenas, das características do filme documentário. Ao contrário do cinema tradicional de ficção, o Neorrealismo buscou representar a realidade social e econômica de uma época.

No Brasil, a historiografia do cinema costuma dizer que Santos foi um dos precursores do movimento neorrealista em versão tupiniquim ao rodar Rio, 40 Graus (1955) e Rio, Zona Norte (1957). São dois filmes que desconstroem o mito da cidade maravilhosa em relação ao Rio de Janeiro.

Logo em seguida, viria Vidas Secas (1963), que revela os mecanismos de opressão social nos rincões do Brasil profundo.

Além da temática, a adaptação de Nelson Pereira dos Santos tem uma linguagem própria no contexto do cinema: fotografia estourada, sem filtros para amenizar a luz (mérito do fotógrafo e produtor Luiz Carlos Barreto, o Barretão); longos planos-sequência; atores amadores; eliminação de trilha sonora; câmera na mão; poucos diálogos; narrativa guiada pelas imagens; entre outros.

Pode-se dizer que o diretor utilizou a linguagem cinematográfica para fazer a sua leitura pessoal da obra-prima do escritor alagoano.

CINEMA NOVO

Versão imortal do monumento literário Vidas Secas, o filme de Nelson Pereira dos Santos também faria à sua época escola dentro do mercado brasileiro. Na verdade, isso já havia ocorrido com Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte. O diretor fora apontado como o ponta de lança do Cinema Novo, um movimento cinematográfico no país que recebia influências das vanguardas europeias, caso da Nouvelle Vague francesa e do Neorrealismo italiano.

O diretor baiano Glauber Rocha (autor de clássicos como Deus e o Diabo na Terra do Sol) dizia que bastava uma câmera na mão e uma ideia na cabeça para fazer filmes que repensavam a realidade brasileira. Para essa turma, Santos conseguiu isso em Vidas Secas.

Mais do que isso, essa produção se tornou um dos filmes mais importantes para entender a cultura brasileira do século 20.