‘Vidas Secas’ é relançado em edição comemorativa de 80 anos
O volume da editora Record tem capa dura e ilustrações de Renan Araujo. O livro toma como base a versão do texto da 2ª edição da obra, publicada pela J. Olympio, com as últimas correções feitas pelo autor
Tudo começou com Baleia. Antes mesmo de Fabiano, sinhá Vitória e seus filhos aparecerem no horizonte do semiárido nordestino, a famosa cachorrinha já existia no universo ficcional do escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953).
É que o velho Graça, como também era conhecido, escreveu primeiro o conto sobre a morte duma cachorra e só depois começou a dar forma ao restante do romance Vidas Secas, cujo lançamento ocorreu em 1938. Aliás, na última hora Ramos mudou o título da obra, trocando O mundo coberto de pennas por Vidas Seccas (conforme a grafia da época), na edição publicada pela lendária editora José Olympio.
Recém-lançada pela Record, a edição comemorativa de 80 anos do romance reproduz o rosto original de Vidas Secas, a partir do acervo da Universidade de São Paulo (USP).
No entanto, o detalhe mais fascinante ao aficionado pela literatura de Graciliano Ramos é a inserção nessa edição comemorativa de trecho de uma carta de 7 de maio de 1937. Do Rio de Janeiro, o autor se correspondeu com sua esposa Heloísa Ramos (em Alagoas) para falar sobre um conto cujo tema era a morte duma cachorra. Ele se questiona se o animal tem alma. O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio de preás. Exatamente o que todos nós desejamos.
Graça ainda informa que é a quarta história feita na pensão onde ele está instalado. Nenhuma delas tem movimento, há indivíduos parados. Tento saber o que eles têm por dentro.
Nesse relato íntimo, o alagoano conta brevemente a gênese de seu mais famoso livro. O pontapé de Vidas Secas inicia com a feitura de um conto sobre a morte de uma cachorra. Inclusive, a nova edição da Record reproduz no capítulo Baleia o manuscrito original com as emendas feitas de próprio punho do escritor.

ROMANCE
De um conto, o livro se transformou num romance. Ou melhor, num romance-desmontável, pois parte da crítica literária já apontou que os capítulos do livro são na verdade contos, cuja independência permite sua leitura fora de ordem.
Mais do que isso, é importante notar que o conto estrelado pela cachorra Baleia serviu de base para a estrutura narrativa de Vidas Secas. No trecho da carta a sua esposa, Graciliano Ramos afirma que ele quer saber o que se passa no interior das personagens.
Em 1938, depois de pronto e lançado o livro, é com isso que o leitor se depara: um mergulho na subjetividade de cinco personagens confrontados com a secura do sertão nordestino: o vaqueiro Fabiano, sua esposa sinhá Vitória, os filhos do casal (chamados apenas de menino mais velho e menino mais novo) e a cachorrinha Baleia.
Acossada pelas condições socioeconômicas daquela região, a família de Fabiano entra em parafuso, mas sem perder seu mundo interior. Todos os cinco (incluindo a cachorrinha, claro) têm sonhos e necessidades que vão além do simples desejo material ou dos limites geográficos. A literatura do velho Graça é universal, introspectiva e lapidada.
CAPÍTULO
Nesse sentido, é importante destacar o capítulo intitulado Baleia, que é um dos mais belos da literatura brasileira.
Descendo ao mesmo nível de interioridade da personagem Baleia, o narrador em 3ª pessoa (ou seja, não é diretamente um dos personagens da história) desvela um mundo de sonhos e desejos.
Sem pieguice ou cafonice, o narrador captura novamente o ponto de vista da personagem, agora nos seus últimos momentos de vida. É impossível não se emocionar.
EDIÇÃO
Na carona dos 80 anos de lançamento de Vidas Secas, a Record está nas livrarias com um volume caprichado, em capa dura, ilustrado por Renan Araujo, tendo como base a versão do texto da 2ª edição da obra, publicada pela J. Olympio, com as últimas correções feitas por Graciliano Ramos.
Além de informações importantes, a nova edição tem prefácio e posfácio escritos por dois especialistas em literatura brasileira: Benjamin Abdala Junior e Hermenegildo Bastos, respectivamente. Em tempo, Bastos tem um excelente livro sobre o universo de Graciliano Ramos: Memórias do Cárcere, literatura e testemunho (ed. UnB, 1998).
Para mais informações, acesse o site da Record (CLIQUE AQUI).