Pioneiro do break no Brasil, o artista Nelson Triunfo conta que foi preso muitas vezes por dançar na rua. “Eu ia preso direto. Tinha um delegado no Bixiga [região central paulistana] que, quando eu chegava lá, ele falava: ‘poxa rapaz, você de novo’. E eu falava: ‘doutor, eu não gosto de vir aqui, não’”, lembra sobre quando levou o break para as ruas do centro de São Paulo.
Era 1983, quando Triunfo e seu grupo começaram a dançar na Rua 24 de Maio, aproveitando o calçamento com pedras grandes que permitiam os passos deslizantes. O artista já dançava há algum tempo nos bailes paulistanos, como o Chic Show, quando teve contato com a estética do hip hop. “O pessoal de uma TV chamou a gente para imitar o pessoal da Soul Train [programa de TV norte-americano]”, conta.
No local onde os dançarinos de break começaram a se apresentar ao ar livre foi colocado, em 2014, o Marco Zero do Hip Hop, monumento composto por duas pedras no chão.
“Antigamente ali era um jardim”, diz Triunfo apontando para o outro lado da rua. “E a gente sentava nele e aqui a gente dançava tudo isso. Mas, você vê o que é a desinformação, uma cidade como São Paulo, cultural, se alguma pessoa vem dos Estados Unidos ou de algum lugar para ver o Marco Zero, vai encontrar um carro em cima do Marco Zero”, reclama. “Antigamente ali era um jardim”, diz Triunfo apontando para o outro lado da rua. “E a gente sentava nele e aqui a gente dançava tudo isso. Mas, você vê o que é a desinformação, uma cidade como São Paulo, cultural, se alguma pessoa vem dos Estados Unidos ou de algum lugar para ver o Marco Zero, vai encontrar um carro em cima do Marco Zero”, reclama.
Triunfo diz que, após a instalação de uma grande base da Polícia Militar na esquina da Rua 24 de Maio com a Dom José de Barros, deixaram de acontecer as festas de hip hop e reggae que eram realizadas semanalmente. “Toda quinta tinha o encontro, a Batalha do Point, aqui. Eles também acabaram”, lamenta.
Mesmo assim, a região continua sendo frequentada pelos artistas que fazem palco da rua. Enquanto a reportagem conversava com Triunfo, os dançarinos Rodrigo Chaw e Roberto Orlandi passaram carregando uma caixa de som e animando o ambiente. “Hoje, são eles que continuam o movimento na rua, nos trens. Eles vivem disso”, diz o veterano a respeito dos artistas mais jovens, que improvisaram uma apresentação com saltos mortais e giros de cabeça no chão.
Essa pulsão mostra, na visão de Triunfo, que o hip hop foi, desde o início, uma cultura de resistência. “Quando era a época do militarismo [ditadura] essas manifestações não podiam acontecer e, mesmo assim, a gente fazia elas acontecerem, era uma resistência”, enfatiza.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista com Nelson Triunfo.

Para começar com essa conversa sobre hip hop sobre break, queria que você me mostrasse onde está o Marco Zero do Hip Hop aqui em São Paulo.
Primeiro, nós começamos em São Paulo dançando na frente do Mapping [antiga loja de departamento, no centro paulistano], do Theatro Municipal, na Praça da Sé, na Praça da República. Teve um lugar que nós descobrimos que não precisava usar aquele papelão [para deslizar no chão]. O lugar tinha umas pedras enormes de granito. Esse lugar virou, a partir de 1983, 1984, um lugar onde todos os dias, menos no domingo, a gente se encontrava. Então, hoje, esse [lugar] é o Marco Zero do Hip Hop que eu vou te mostrar. [Caminha alguns passos e chega ao local onde há uma van da Polícia Militar].
Infelizmente, eu não vou poder mostrar para você, porque está debaixo do carro. Isso aqui é o Marco Zero, debaixo do carro, debaixo do pneu. Ali, está vendo as pedras? Então, essa pedra aqui é onde tudo começou. O marco zero de uma cultura maravilhosa, que nós temos campeões mundiais. Eles ganham medalhas e tudo. [A entrevista é interrompida pela passagem de dois jovens com uma caixa de som. Junto com Triunfo, eles dançam em uma breve apresentação improvisada.] Hoje, são eles que continuam o movimento na rua, nos trens. Eles vivem disso. [Diz em referência aos jovens dançarinos].
Então, o hip hop ainda é uma cultura viva por aqui?
Assim é o hip hop. Se a gente ficar aqui, de vez em quando, uns [artistas] vão passar por aqui. Precisamos recuperar a cultura do centro, porque ela hoje está no Brasil inteiro. Mas foi aqui que ela começou, justamente quando aqui se parecia um pouco com um deserto. Quando era a época do militarismo [ditadura] essas manifestações não podiam acontecer e, mesmo assim, a gente fazia elas acontecerem, era uma resistência.
E como foi a formação do hip hop aqui em São Paulo, com a reunião dos quatro elementos – break, grafite, DJ e MC?
Há 50 anos, os quatro elementos se formaram. Mas se formaram porque já existiam esses elementos, que foram crescendo. Em 1981, em 1982, eles já tinham começado no Bronx e ido para o centro de Nova York, com o movimento já em outro patamar. Nós também estávamos indo aqui em São Paulo, há 40 anos, porque se conta o início a partir de 1983, quando eu levei pela primeira vez o meu grupo para a rua. Nós também já tínhamos os quatro elementos.
Você fazia o que antes do hip hop?
A base de tudo, original, para quem não sabe, é o funk, que trouxe tudo, com o James Brown e as bandas de soul. Eu era do soul. Os primeiros raps que samplearam, fechados em quatro tempos, eram com a base do soul. Eram cantados em cima do soul. O b-boys [dançarinos de break] eram um som mais apressado. Break não quer dizer dança, break é o break [parada] da música. Quando dava aquelas rufadas de percussão, os caras adoravam dançar. Dançavam no break da música – break boy – cara que dança no break [intervalo].
Então, nós fomos para a rua em 1983, no início. Nós já dançávamos no [baile] Chic Show, o [estilo] robô, o wave, um pouquinho de lock. Quando nós fomos para o Black Rio, a gente dançava só soul. Então, nós fomos vendo algumas coisas lá fora e o pessoal e uma TV chamou a gente para imitar o pessoal da Soul Train [programa de TV norte-americano], que eram justamente os The Lockers [grupo de street dance fundado na década de 1970]. Só que eu nem sabia que tinha a ver [com hip hop]. Depois, [vieram as influências] do pop, do rock, do wave, que vinham mais de Fresno de Los Angeles [na Califórnia (EUA)], do que de Nova York, que eram o rap e o break.
Tudo isso foi chegando, e eu, como já estava preparado, disse: “É agora!”. Chamei o grupo, e disse: “Vamos para a rua”. Mas não era fácil. De vez em quando eu pegava um BO [boletim de ocorrência], ia preso. Eu ia preso direto. Tinha um delegado no Bixiga [região central paulistana] que quando eu chegava lá, ele falava: “poxa rapaz, você de novo”. E eu falava: “doutor, eu não gosto de vir aqui, não, são os homens que me trazem”.