Choque de cultura: aventura na selva e alteridade em ‘Brincando nos campos do Senhor’, 30 anos depois

Há quase 30 anos, “Brincando nos campos do Senhor” (1991) estreava nos cinemas norte-americanos. Essa superprodução gringa tem direção do cineasta naturalizado brasileiro Hector Babenco, cuja morte completou cinco anos na última terça-feira (13 julho)

O cineasta Hector Babenco não se entendeu com os norte-americanos. E não foi apenas uma questão de língua (espanhol/português vs. inglês). Era mesmo uma questão cultural. Choque de cultura.

Não por sinal, “Brincando nos campos do Senhor” (1991) propõe o conflito entre culturas ao contar a história de dois missionários de uma pequena cidade que são enviados para uma floresta na América do Sul para converter os índios locais.

Há quase 30 anos, o longa-metragem ianque de Babenco (1946-2016) estreava nos cinemas dos Estados Unidos. Era dezembro. Com orçamento milionário (US$ 32 milhões à época), a produção feita por Saul Zaentz (“Um estranho no ninho”, “Amadeus”) trazia em seu elenco estelar nomes como Tom Berenger, Tom Waits, Daryl Hannah, Kathy Bates, John Lithgow, Aidan Quinn. Além dos brasileiros Stênio Garcia, Nelson Xavier, José Dumont.

“Brincando nos campos do senhor” não foi bem recebido no mercado anglo-saxão. Estreou apenas em outubro de 1992 no circuito brasileiro, sendo mais conhecido em seguida no home video. Uma pena, pois é um longa interessante, baseado no romance “At play in the fields of the Lord”, de Peter Mathiessen. O Arquivos Culturais desta semana é dedicado ao filme e principalmente a Babenco, cuja morte completou cinco anos na última terça-feira (13 julho).

Em 2 de outubro de 1992, o jornal carioca O Globo publicou uma entrevista com Babenco, título “Sob os caprichos da selva”, assinada por Helton Ribeiro.

Nessa conversa, o diretor explica que a razão para não ter “desabrochado” no mercado anglo-saxão se devia à estratégia de lançamento da produção, que concorreu à época com filmes de maior recurso financeiro de divulgação. “Outro fator é que o filme é extremamente amargo e brutal para um público anglo-saxão”, disse o cineasta.

Segundo ele, todos os personagens de língua inglesa que aparecem em cena são derrotados pela realidade brasileira. Aliás, a proposta é mostrar as forças que têm invadido a Amazônia. “É óbvio que o americano que vai ao cinema com a mulher, dois filhos e um saco de pipoca não gosta disso”.

Para ele, o grande desafio na produção foi a própria floresta amazônica. “Você tem que se render ao capricho dela, porque não consegue controlá-la. Não consegue estudar, nem planificar as enchentes e vazantes dos rios, nem as diferenças térmicas ou de luz que a floresta apresenta diariamente”.

E o motivo para ter feito “Brincando…” surgiu após visitar algumas comunidades indígenas e entender o processo de descaracterização cultural sofrido pelos índios.

Entrevista com Babenco para jornal O Globo (Foto: Reprodução)

BASTIDORES
Em 26 de agosto de 1990, O Globo publicou em português reportagem assinada por James Brooke para o jornal gringo The New York Times.

“Um massacre na selva” tem como foco os bastidores de filmagem de “Brincando nos campos do Senhor” nas selvas do Pará, com entrevistas e um resumo da narrativa.

Brooke classifica Babenco como “o mais destacado diretor latino-americano” naquele momento; e o elenco é um dos mais talentosos a atuar na América do Sul. “O roteiro enfileira índios, missionários, garimpeiros de ouro e ‘empresários imobiliários da floresta’. Mas a reunião de interpretações, redação, direção e produção garante que esta não será uma mera chuva de verão”, diz sobre o roteiro escrito a quatro mãos por diretor e Jean-Claude Carrière.

Em conversa com os atores, no Belém Hilton, o astro John Lithgow diz que “o filme é sobre o choque de culturas, a destruição de uma cultura por outra”. Afinal, “Brincando…” apresenta a missão dos missionários americanos em catequisar os índios niarunas, ainda intocados pelo homem branco. Ao mesmo tempo, mercenários americanos entram em cena.

STREAMING

Esse longa-metragem está disponível em plataformas de streaming. No caso da SPCine Play, pode ser assistido gratuitamente pelo Looke, mediante cadastro.

Em tempo: para esta edição da série Arquivos Culturais se utilizou como referência a data de 1991 em “Brincando nos campos do Senhor”, conforme consulta ao IMDb, famosa base de dados na internet.

BABENCO
Diretor, roteirista e produtor de cinema, Hector Babenco nasceu na Argentina em 1946, chegou ao Brasil em 1969, naturalizando-se brasileiro. Começou no cinema em 1973, como produtor executivo e codiretor, com Roberto Farias, em “O Fabuloso Fittipaldi”. Em 1975, dirigiu sua primeira ficção, “O Rei da Noite”.

Babenco alcançou uma das melhores bilheterias do cinema nacional brasileiro com “Lúcio Flávio – O Passageiro da Agonia” (1977). É autor do sucesso de público “Pixote, a Lei do Mais Fraco” (1980), melhor filme estrangeiro do ano de acordo com as associações de críticos de Los Angeles e de Nova York.

Sua primeira produção internacional foi “O Beijo da Mulher-Aranha” (1985), com quatro indicações ao Oscar, incluindo melhor diretor. William Hurt ganhou Oscar de melhor ator e o prêmio de interpretação masculina em Cannes pelo filme.

Dirigiu Jack Nicholson e Meryl Streep em “Ironweed” (1987) pelo qual foram indicados para o Oscar de melhor ator e melhor atriz.

Filmou na Argentina “Coração Iluminado” (1998), inspirado em suas lembranças de adolescência. O filme foi selecionado para concorrer à Palma de Ouro no Festival de Cannes.

Selva foi o principal obstáculo para as filmagens de “Brincando nos campos do Senhor” (Foto: Reprodução)

Em 2003, foi escolhido para a Seleção Oficial da Palma de Ouro, pelo Festival de Cannes com “Carandiru”, uma das maiores bilheterias do cinema nacional. Com histórias iniciadas no longa, criou em 2005 para televisão a série “Carandiru – outras histórias”.

Em 2007, dirigiu “O Passado”, um filme argentino-brasileiro, com o ator Gael Garcia Bernal como personagem principal.

Seu último longa-metragem é “Meu Amigo Hindu” e foi lançado nas salas de cinema em março de 2016. O filme conta com argumento, roteiro, direção e produção de Hector Babenco. O filme conta com o ator Willem Dafoe e a esposa de Hector, Barbara Paz, renomada atriz brasileira que dirigiu “Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou”, que ganhou o prêmio de melhor documentário em Veneza e foi a seleção oficial do Brasil para o Oscar de Melhor Filme Internacional em 2021.

***************Texto/pesquisa: Cris Nascimento, especial para CORREIO

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