Autora transforma estatísticas de abusos em romance fictício em busca de reflexão sobre relações: ‘Gostaria de ter lido ao final da adolescência’

Obra de Jessica Cardin é narrada de forma lírica e conta como uma paixão entre professor e aluna avança para armadilhas psicológicas, intelectuais e emocionais

Os motivos que levam as pessoas a aceitarem relacionamentos danosos foram a inspiração de Jessica Cardin para escrever seu romance de estreia ‘Para onde atrai o azul’. A realidade de diversas pessoas é contada sob a perspectiva fictícia da protagonista narradora Heloise, de 25 anos, que vive uma paixão com o professor de literatura, Heitor. A relação, porém, avança para armadilhas psicológicas, intelectuais e emocionais.

“Minha inspiração surgiu da curiosidade de construir personagens cujas trajetórias dessem pistas para estes motivos, que não são sempre os mesmos, claro, mas que pudessem trazer contextos mais amplos de suas histórias, mais do que fotos estáticas, um momento em que um é vítima e, o outro, algoz. Durante a vida, que é tão dinâmica, vivemos vários papéis. Essa dança, por assim dizer, era o que me interessava em mostrar, qual repetição de passos levaria a essa coreografia macabra”.

Para escrever a obra em que a protagonista descobre que o impulso amoroso, o comportamento autodestrutivo e o sentimento de inadequação são frente e verso da página de um mesmo livro, a autora pesquisou estatísticas e dados sobre os problemas tratados no romance, como depressão e abusos. “Me deu clareza para defender essa história como sendo completamente verdadeira, ainda que fictícia. Ela está acontecendo agora mesmo, em alguma casa ao lado”, explica Cardin sobre o livro que narra os acontecimentos violentos de forma lírica.

“O tema do livro e essa tentativa de entendimento de relacionamentos nocivos que alguém escolhe, de alguma maneira, viver, só poderia ser contado do ponto de vista de quem viveu”, ressalta a autora sobre a escolha de ter a protagonista como narradora. Desta forma, o único ponto de vista do livro é o da mulher “que vive um mundo mais imagético e simbólico, em oposição ao namorado intelectual, hábil em linguagens elaboradas e difíceis”.

O conflito, portanto, também acontece no campo das escolhas lexicais e de forma. “A linguagem poética tem disso: dizer sem dizer, dizer por meios que não são os mais diretos ou imediatos. A forma poética me abriu possibilidade para dizer que minha protagonista vê o mundo de forma ambígua. Nenhum objeto é apenas um objeto. Olhos são asas que se abrem, o deslumbre é um véu que cobre… E tudo isso unido ao uso de barras oblíquas (/), que somam sentidos, representando sempre e/ou, e criando relações entre as palavras ou frases que estão entre elas. Uma coisa nunca é apenas ela, mas sempre também outra. Amor é também nojo, violência, mal estar”.

Jessica Cardin ainda ressalta que o lirismo é baseado em idealizações diversas criadas sobre as pessoas amadas. “Nunca é possível conhecer alguém completamente: parte do que achamos que sabemos é sempre uma invenção. A linguagem poética chega a ser uma forma de encobrir a violência contida no relato, pois de outra maneira, seria ainda mais pesado”, enfatiza.

A partir da obra, a autora espera alcançar aqueles que viveram ou vivem situações parecidas com as da protagonista. “É um livro que eu gostaria de ter lido ao final da adolescência, portanto espero que mulheres e homens jovens possam ler e refletir sobre estes temas. E que pessoas que estejam criando crianças possam ler, porque ainda não aprendemos, enquanto sociedade, a nos relacionar sem dominar. O poder me parece sempre a questão central de toda relação, seja institucional, familiar ou amorosa”, finaliza.

“Para onde atrai o azul é a anatomia delicada de um relacionamento abusivo. Acompanhar esse martírio tão lindamente narrado é o nosso privilégio. Emergimos do mergulho nessa relação insidiosa muito encantados e, certamente, vigilantes. Vamos repetir na literatura, sempre e sempre, o que não queremos nunca mais em nossas vidas.”

ORELHA

O livro conta com orelha de Mariana Salomão Carrara e capa de Sílvia Nastari, com aquarela de Adriana Bento.

AUTORA

Jessica Cardin (1991) é paulistana, responsável pela concepção e pelo desenvolvimento de projetos e eventos literários. Faz parte do coletivo de escritores Água na Peneira, do qual também fazem parte Mariana Salomão Carrara, Ana Squilanti, Leonardo Piana e Aline Motta, entre outros. Escreve ensaios e crítica de arte para o portal Woo! Magazine. Organiza para 2023 uma coletânea de contos inspirados na música clássica em parceria com a editora Tipografia Musical.

FICHA TÉCNICA

Título: Para onde atrai o azul

Autora: Jessica Cardin

Gênero: Romance

Formato: 14×21 cm

Capa e projeto gráfico: Sílvia Nastari

Imagem de capa: Adriana Bento

Preço: R$ 54

Páginas: 184 pp.

Editora Quelônio

**************TRECHO DO LIVRO

“Eu perdi o apetite de uma vez. O anseio pelo Heitor se transformou em ânsia, um desconforto permanente no estômago. Perdi bem uns dois quilos naquele começo, o corpo de menina sumindo debaixo dele.

As mulheres e as crianças são parecidas.

Quando minha sobrinha nasceu, eu chorei.

Chorei porque veio mulher e porque chegou parecida comigo no tudo, no detalhe. Eu pegava no colo abraçando o bebê e pensava por que não é minha? A única prece de que sou capaz; seja forte, na sua casa eu não posso te proteger (minha mãe não protegeu). Mais um tempo e eu disse ao pai dela não enlouqueci antes, eu sobrevivi; mas dessa vez eu te mato e enlouqueço e falei pra ele nunca fazer como fez comigo. Meu irmão prometeu. Quando brinca no quarto, a Letícia manda a porta aberta, não deixa fechar. Ela veio com casca, veio forte, mais inteligente do que eu fui. Eu não era como as outras, ficava em casa, desenhando, as crianças desciam pelo escorregador de todos os jeitos, havia tantas formas de brincar! Eu não conhecia nenhuma, resolvi ir de joelhos.

A aterrissagem do rosto, o queixo sem freio, o corte na ponta / algo de pulsante e urgente / minha mãe correndo. O sangue era muito, nunca tinha visto tanto sangue a correr de mim. Não tínhamos plano de saúde, ela fez um curativo de ponto falso. Esparadrapos. Queixo sem pontos. Me faltou costurar na infância. O Heitor passando os dedos por meu rosto, eu sinto aquele ponto sensível, será que a dor nunca passa? Eu era pequena e burra. Eu deixei. E agora? A dor nunca passa, os dedos encontram / o corte / sabem

exatamente

onde machuca.”

Deixe um comentário