Entre o que podemos fazer com a técnica e o que a técnica poderá fazer conosco

“O momento valoriza mais palavras com ruídos que pensamentos e ideias. Vive-se a era das transformações. O capital se transformou no único gerador simbólico de valores”

Com a overdose da técnica é sempre bom perguntar o que Heidegger um dia perguntou: o que há de humano no homem?

A sentença é que a desumanização do humano caminha a passos largos.

Faz tempo que ‘a política’ em seu sentido puro não cumpre mais seu papel, sendo transformada em acessório ou instrumento. O fato é que ‘políticos que deixaram de ser políticos em sua essência’ trabalham mais para o mercado ao invés de gastarem energia com a sociedade. A política tradicional se modernizou e agora não é mais o lugar da decisão. Neste raciocínio, não mais existe o bem comum, uma vez que a política delegou suas escolhas à economia e, consequentemente, a economia delegou suas escolhas à técnica.

O momento valoriza mais palavras com ruídos que pensamentos e ideias. Vive-se a era das transformações. O capital se transformou no único gerador simbólico de valores. As pessoas não sabem mais o que é decente, verdadeiro, justo e sagrado. Pensa-se apenas no que é útil. A emergência de um silencioso (mas preocupante) empobrecimento da sensibilidade humana diante do vertiginoso melhoramento das tecnologias merece uma atenção mais que especial de todos nós para um gradual processo de desativação destas ferramentas.

Na era da técnica, nos tornamos funcionários de aparelhos e dispositivos. Dito de outra forma ‘fomos capturados quase que integralmente’ e só se pensa em medir os graus de eficiência e produtividade acima das escolhas humanas. A técnica, em outros tempos considerada uma ferramenta a serviço do ser humano, tornou-se, hoje, no verdadeiro senhor da história, delegando ao ser humano o papel de pseudo piloto de uma máquina eficiente.

As pessoas estão em grande desvantagem em relação ao sistema, mas [ainda assim] acredito que a saída continua sendo a opção pelas pessoas, seja em um processo eleitoral, seja em um processo educacional ou até mesmo em um processo empresarial. Dependendo das pessoas e suas movimentações, pode-se fissurar um pouco mais o sistema. Do contrário, a técnica incontrolável pode determinar o fim completo de uma sociedade que já foi mais autônoma.

Neste sentido, a imprevisibilidade do amanhã nos assusta. Talvez, se gastássemos ainda um pouco de energia na tentativa de recuperar o ser humano e, por consequência, a política para o ser humano, negaríamos não só a assinatura para este domínio como poderíamos propor novas cláusulas que estabelecessem a diferença de desenvolvimento e progresso.

Qual a chance de evitar a sentença do ex-humano da pós-natureza?

Ainda temos algumas, a começar pelo posicionamento do Papa Francisco. Deixo aqui um breve comentário do diálogo entre o psicanalista italiano Umberto Galimberti:

Santidade, o senhor colocou as pessoas na frente dos princípios, porém tem apenas um pulmão, trabalha como um louco, está cheio de inimigos; tenha cuidado para não morrer, caso contrário eles elegerão alguém que vai recolocar os princípios na frente das pessoas. Ele riu e me abraçou, sussurrando: ‘Lembre-se de que Deus salva as pessoas, não os princípios’.

Por fim, entre o que podemos fazer com a técnica e o que a técnica poderá fazer conosco, fico com a primeira. Mas fica a grande questão: temos capacidade de chegar, por meio da reflexão e do pensamento, a um confronto razoável com o que realmente está acontecendo no tempo presente?

 

**********Claudio Andrade é professor associado da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), no Departamento de Filosofia. Ele é presidente da Academia de Letras, Artes e Ciências de Guarapuava (Alac), além de assessor da Rede de Assessores de Cefep/CNBB Brasília (DF)