A histórica resiliência feminina

‘Nesse mesmo período, em 1953, Katharina interrompeu o árduo trabalho em seu terreno na Colônia Vitória, em Entre Rios, para secar o suor da testa. Ao seu lado, ajudando-a a colher manualmente a primeira safra de trigo, estavam as três filhas e outras cin

No dia em que 15 mil mulheres tomaram as ruas de Nova Iorque em 26 de fevereiro de 1909, uma linda menina suábia chamada Katharina nascia na região do médio Danúbio, no leste europeu, em território então pertencente ao império Austro-Húngaro. Quando 125 mulheres e 21 homens morreram durante um incêndio, também em terras nova-iorquinas, em 25 de março de 1911, trazendo à tona as más condições de trabalho enfrentadas por elas durante a Revolução Industrial, a pequena Kathi mal tinha completado o segundo aniversário. No mesmo ano, sua mãe soube que, de forma inédita na história, uma cientista polonesa de nome Marie Curie havia recebido duas vezes o Prêmio Nobel em áreas científicas distintas: Física e Química.

Aos cinco anos, no exato momento em que Kathi ajudava sua mãe a recolher os ovos no galinheiro da família, um estudante bósnio assassinava o herdeiro do trono austríaco Francisco Ferdinando e sua esposa Sofia Maria Josefina Albina de Chotek, Condessa de Chotkov e Wognin: era 28 de junho de 1914 e a Primeira Guerra Mundial estava prestes a eclodir. Pouco antes de completar 9 anos, durante a preparação do jantar na companhia da avó, ouviu no rádio algo sobre o direito ao voto das mulheres na Inglaterra, oficializado em 6 de fevereiro de 1918. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, após a rendição alemã assinada em 11 de novembro do mesmo ano, Katharina descobriu que o retorno do seu pai do conflito seria uma espera infindável.

Já não ia mais à escola à época da canonização de Joana D’Arc pela Igreja Católica, em 30 de maio de 1920, cinco s-é-c-u-l-o-s após ser queimada viva aos 19 anos pelo crime de feitiçaria. Katharina tinha apenas 11, mas já era grandinha para acordar diariamente às cinco da manhã e caminhar por meia hora ao lado da mãe e dos tios até chegar ao campo para iniciar os afazeres agrícolas. Carpia sob sol forte quando ouviu o tio comentar que sua família passava a viver no Reino da Iugoslávia, após a dissolução do Império Austro-Húngaro, mas que continuava a integrar a mesma etnia, rebatizada para Suábios do Danúbio.

Kathi cresceu, fez várias amigas e conheceu Philipp. Então, duas semanas depois de a artista Tarsila do Amaral presentar seu marido Oswald de Andrade com a obra-prima brasileira o Abaporu, em janeiro de 1928, Katharina casou-se com Philipp, o primeiro e único homem de sua vida. Sua primogênita nasceu em 1929, período no qual o Equador se tornou o primeiro país latino-americano a aprovar o voto feminino. Situação que chegaria ao Brasil apenas em 1932, graças à articulação política da bióloga Bertha Lutz, o que possibilitou que Carlota Pereira de Queiroz fosse a primeira deputada eleita do país, dois anos depois.

A terceira Mädl (menina, em suábio) de Kathi e Philipp nasceu em 3 de setembro de 1939, data em que a França e o Reino Unido oficializaram seu ataque contra a Alemanha pela invasão à Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. A caçula estudou até 1944, quando o avanço das tropas russas obrigou Katharina a tomar a decisão mais difícil de sua vida.

Com Philipp na guerra, deveria optar sozinha entre permanecer e contar com a dubitável complacência dos guerrilheiros partisanos ou fugir, deixando toda a sua vida e seus poucos bens para trás. Optou pelo mais difícil, porém mais seguro: empanturrou a frágil carroça com tanto quanto cabia de mantimentos, roupas e ração (para os dois cavalos), e partiu em meio à primeira neve do outono de 1944, acompanhada pelas três filhas e de sua idosa mãe. Os tios não quiseram fugir e jamais tornou a ter notícias deles.

Pouco antes de chegarem à Áustria, três semanas após a partida, o comboio foi surpreendido por guerrilheiros durante uma parada e a caçula de Katharina foi sequestrada. Em território austríaco, as quatro mulheres iniciavam uma jornada de longos sete anos de exílio, trabalhando na casa de uma família de agricultores em troca de comida.

Os anos passaram vagarosamente, até que exatamente três semanas depois de Simone de Beauvoir lançar a obra O Segundo Sexo, em 1949, uma menina esquálida surgiu diante da janela da cozinha, na qual Kathi lavava a louça de toda a família. Ela soltou um grito e correu em direção à sua Mädl: ela passara quase cinco anos em campos de trabalhos forçados na Rússia construindo ferrovias e carregando sal na neve. Como sobrevivera, só Deus sabe.

Finalmente, em 1951, a matriarca reuniu a mãe e as três filhas no pequeno quarto e leu a carta da Ajuda Suíça para a Europa, assegurando-lhes a possibilidade de se mudarem ao Brasil para recomeçarem a vida. Pela primeira vez, aos 42 anos de idade, ela se permitiu chorar em frente à família. Da mesma forma que, dois anos depois, a física, cientista espacial, matemática e xará Katherine Johnson iria derramar algumas poucas lágrimas de felicidade ao se ver quebrando barreiras históricas como mulher negra liderando equipes de homens na NASA.

Nesse mesmo período, em 1953, Katharina interrompeu o árduo trabalho em seu terreno na Colônia Vitória, em Entre Rios, para secar o suor da testa. Ao seu lado, ajudando-a a colher manualmente a primeira safra de trigo, estavam as três filhas e outras cinco mulheres – as primeiras amizades construídas na nova pátria.

A Kathi dessa coluna não é real, mas ela sempre existiu, exprimida na história de centenas de mulheres suábias, que conviveram com as atrocidades das guerras, o preconceito, a relativização de suas dores e angústias, as decisões que mudaram o destino de gerações. Mulheres que trabalharam no campo, nas serrarias, marcenarias, na construção das estradas, das casas, dos alojamentos comunitários, que cozinhavam, carregavam toneis de água por quilômetros. Mulheres que construíram Entre Rios juntamente com os homens e ainda cuidavam da casa e da família.

Katharina é o nome da minha Oma (avó) materna e Philipp era o do meu avô, falecido há 14 anos. A Kathi real, completa 91 anos na semana que vem. Que a determinação de todas as mulheres citadas nesse texto inspire, fortaleça e permita que jamais falte coragem diante de um mundo tantas vezes injusto, cruel e insensível para com as mulheres. Que as Kathis do futuro possam apenas pensar em viver felizes e realizadas, assim como todas merecem.

 

*********Klaus Pettinger é jornalista, escritor e o autor do romance ‘O Sumiço do Hanomag’. Neste espaço, ele conta semanalmente curiosidades e fatos históricos sobre a colônia suábia de Entre Rios. Para contato com o colunista: [email protected]; Facebook: klauspettinger