Tocando o terror!

No princípio, era o terror tradicional, com muito sangue, erotismo e cenas exageradas; inverosimilhança era praticamente a regra. Mas a coisa se sofisticou e apareceram histórias e autores que se aprofundavam na psique humana e em temas pesados. Já não bastavam apenas a carnificina e os monstros estereotipados, era preciso investir numa narrativa psicológica, com um traço sombrio e aterrorizante. Para se diferenciar das manjadas histórias, as margens desse novo limiar vinham tingidas de preto. Margens negras à margem do terror tradicional produzido em terras tupiniquins.

Assim ficou conhecida a produção quadrinística da dupla Gian/Bené nos anos de 1980/90, em revistas brasileiras que marcaram época nas tradicionais bancas de jornal: ‘Mephisto – Terror Negro’, ‘A hora do Crepúsculo’, ‘Calafrio’, entre outras.

Trabalhando em parceria, os compadres Gian Danton (roteiro) e Bené Nascimento (desenhos) – futuro Joe Bennett – fizeram história(s), literalmente, ao trazer para o Brasil um tipo de quadrinho de terror visceral e psicológico, que inovou em um cenário de narrativas mais, digamos, quadradas. Não por sinal, a influência da dupla vinha de artistas britânicos que despontavam no mercado europeu: Alan Moore, Neil Gaiman, Dave MacKean, Dave Gibbons.

Desse modo, o traço de Bené era sujo, sombrio e repleto de detalhes bizarros; já o texto de Gian pesava o lado psicológico, com personagens neuróticos, em narrativa não-linear, repleta de flashbacks e tramas paralelas.

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As histórias produzidas a quatro mãos pela dupla começaram a fazer tanto sucesso nas bancas, mercado exclusivo das revistinhas de terror dos anos de 1990, que Bené teve a ideia de pintar as margens das páginas para se diferenciar da maioria das publicações, vendidas fechadas em sacos plásticos. Como quase ninguém podia abrir essas revistas, eu criei um processo de pintar de preto as bordas e os quadros. Daí surgiu o nome ‘Margem Negra’. Todo mundo que comprava uma revista ensacada sabia que, ali no meio, tinha uma história minha e do Gian, explica.

Segundo Gian, muitos editores chegaram a fazer essa margem negra nas histórias como uma forma de marketing. Eles percebiam que vendia mais, em depoimento ao vídeo da campanha de financiamento.

O roteirista acredita que ele e Bené trouxeram uma inovação para o quadrinho nacional de terror. A gente tinha influência de caras que traziam um terror mais visceral, mais pesado e até muito diferente do que se fazia na época.

E ‘Margem Negra’ é o nome do projeto de financiamento coletivo que capta recursos na internet para recuperar as histórias clássicas de Gian/Bené em um álbum de luxo, que contará também com material inédito e exclusivo. Restando menos de 30 dias para ser finalizada, a campanha está hospedada no site Catarse e precisa atingir a meta de R$ 21 mil para concretizar o álbum.

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Os jovens Gian Danton e Bené Nascimento (Joe Bennett), à época de produção das histórias de terror

Por isso, o projeto ‘Margem Negra’ necessita do apoio dos internautas, que pode começar em R$ 10. À medida que os valores aumentarem, as recompensas também. De livros a gibis, passando por artes especiais e outros objetos, o apoiador tem diversas surpresas.

O ‘Margem Negra’ pretende recuperar páginas e mais páginas quase perdidas, muitas das quais só foram encontradas em gibitecas ou com a ajuda dos fãs da dupla e, claro, o famoso porão do editor Franco de Rosa de onde saíram perfeitos e intactos os originais de duas historias completas. Todo esse material está sendo resgatado e reunido pela primeira vez.

A edição vai trazer também uma história nova e totalmente inédita, escrita por Gian Danton e desenhada por Joe Bennett assim como uma capa com ilustração nova laminada fosca com verniz localizado.

BENNETT (BENÉ)
À época da parceria com Gian Danton, Bené Nascimento ainda não era mundialmente conhecido pelo nome artístico de Joe Bennett, o desenhista brasileiro que produziu trabalhos de destaque para as editoras norte-americanas Marvel e DC Comics; além de ter trabalhado com Alan Moore.

Mas antes do estrelato mundial, seu traço aterrorizou gerações de leitores brasileiros ao combinar a sujeira sombria com a inventividade psicológica de Gian, em um sistema de produção ao estilo Marvel Way; ou seja, sem um roteiro engessado e com criação narrativa feita a quatro mãos.

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Hoje, Gian Danton e Joe Bennett (Bené)

Por isso, o projeto ‘Margem Negra’ é fundamental para Bennett. Representa o resgate de uma fase em minha carreira que me é muito importante. Algo que deve ser compilado de forma correta e apreciado por uma nova geração e relembrado pela antiga, diz, em entrevista exclusiva ao CORREIO.

Idealizado pelo coordenador da Gibicon e sócio da ZnorT! Fabrizio Andriani, o álbum de luxo nasceu em 2007, quando foi feita uma exposição com o trabalho de Bennett na Gibiteca de Curitiba. Nessa ocasião, o desenhista conheceu o acervo da biblioteca e veio a ideia de recuperar o antigo material produzido junto com o compadre Gian.

Na avaliação de Bennett, essas histórias passaram pelo teste do tempo, já que ele as julga como de suma importância para o quadrinho nacional. Visto que foi pioneiro no que se propunha. Até mesmo pioneiro dentro do que se fazia lá fora, pois foi feito alguns anos antes da criação do selo Vertigo [da DC Comics], destacando que isso se torna ainda mais impactante, se pensar que foi feito por dois rapazes de 20 poucos anos, isolados do mundo na região Norte do Brasil, em um período sem internet. Lembrando que, nessa época, Bennett residia em Belém (PA).

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Mas engana-se quem pensa que foi simples publicar o material nos anos de 1990. Segundo o quadrinista, havia muita resistência por parte dos editores. Afinal, era um material composto de histórias à frente do seu tempo e que exploravam temas pesados, mesmo para os dias de hoje. E duvido que essa experiência [dele com o Gian] seja repetida agora. O mercado de quadrinho nacional de terror acabou, destacando que a produção no gênero acabou 25 anos atrás e nunca mais voltou.

OPORTUNIDADE
Em sua conta pessoal no Facebook, Bennett diz que os leitores vêm cobrando há anos o relançamento dessas histórias de terror dos anos de 1990. Mas, segundo ele, isso era praticamente impossível na atual configuração do mercado editorial brasileiro.

Somente com projetos financiados coletivamente é que as coisas podem mudar. Eis que nos dias de hoje tudo isso é possível. Existem maneiras de se fazer isso sem precisar contar com uma editora e de sua boa vontade. Tudo mudou dadas as condições que o financiamento coletivo existe para colocar estes projetos e muitos outros na rua.

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Desse modo, o artista chama a atenção dos internautas para a oportunidade criada pelo projeto ‘Margem Negra’ de reunir as antigas histórias em um álbum especial. Esta tudo na mão do leitor. Do cara que curtia este trabalho quase três décadas atrás. Do apreciador de uma BOA história em quadrinho, que mesmo tendo 25 anos ainda é boa, acrescentando que é uma produção com honestidade e talento, feito por dois rapazes entre 22 e 20 anos de idade, perdidos no Norte do país, nos inimagináveis idos dos anos 80 para 90.

IDEALIZADORES
Fabrizio Andriani – Coordenador da Gibicon e sócio da ZnorT! Editora
Gabriel Billy – Editora Devaneio

ARTISTAS
Gian Danton (roteiro)
Joe Bennett – Bené (desenhos)

APOIO
Franco de Rosa (Editor)
Maristela Garcia (coordenadora Gibiteca de Curitiba)

Texto: Cristiano Martinez
Fotos: Divulgação e Arquivo Pessoal

Vídeo da campanha

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