Resenha/quadrinhos: O que teria acontecido a Gilda?

Lançada durante a Bienal de Quadrinhos de Curitiba, neste mês de setembro, “Uma moeda ou um beijo” é graphic novel paranaense sobre uma personagem que marcou época em Curitiba: Gilda. O material é uma produção da editora independente Quadrinhópole, com roteiro de Leonardo Melo e arte de André Caliman

O que teria acontecido a Gilda? Esta poderia ser a principal pergunta em “Uma moeda ou um beijo”, graphic novel paranaense lançada pela editora independente Quadrinhópole durante a 7ª Bienal de Quadrinhos de Curitiba, neste mês de setembro.

A narrativa já começa com a notícia sobre a morte da personagem, uma figura histórica que marcou os anos de 1970/80 na Capital do Estado. Aliás, o entrelaçamento de ficção e História é o cerne dessa HQ escrita por Leonardo Melo e desenhada por André Caliman.

Desse modo, o leitor é transportado para 15 de março de 1983, quando Curitiba amanheceu com a trágica notícia da morte de Gilda, uma travesti que circulava pelo Centro curitibano, especialmente na região da Boca Maldita. Como todos devem saber, trata-se de um espaço frequentado por pessoas falando de tudo e de todos. E claro que o assunto acaba sendo o falecimento da famosa personalidade.

Odiada por uns, amada por outros. Assim era Gilda, um símbolo carnavalesco de alegria e liberdade, contra a caretice e o conservadorismo da época. Para conseguir ajuda dos passantes, ela soltava o seu “uma moeda ou um beijo”. Chegou até mesmo a abordar José Richa, futuro governador do Paraná naquele período.

O impacto da morte de Gilda também desperta em seus amigos, simpatizantes e até dos inimigos especulações sobre o que teria levado ao fim da travesti. Neste momento, entra em cena Davi, um ex-policial que trabalha como detetive particular. “Uma moeda ou um beijo” é, na verdade, um thriller de mistério que leva leitores e leitoras a acompanharem a investigação em torno da verdade sobre a vítima.

Teria morrido por causa de inveja, ódio ou porque sabia demais? São algumas das teses de Davi, que é o fio condutor da narrativa elaborada por Melo, com traço caprichado de Caliman. Aliás, é preciso dizer que o roteiro é impecável, com humor (ou tragicomédia), ritmo cadenciado e mergulho na história do Paraná e Curitiba. O roteirista apresenta um trabalho árduo de pesquisa, em fontes acadêmicas e jornais/revistas da época (que noticiaram com destaque a morte da travesti).

Para os mais nerds, a edição da Quadrinhópole é um prato cheio. Ela é recheada, no “Apêndice – Notas do roteirista”, com informações essenciais. Melo faz o cotejamento de cenas criadas na HQ com fatos sobre Curitiba. O escritor demonstra uma preocupação e responsabilidade social com aquilo que ele criou a partir da pesquisa histórica.

Por sua vez, Caliman está em grande forma, elaborando um desenho fluido e belo, cheio de linhas finas, leves e econômicas; mas sempre com detalhismo, principalmente no cenário urbano de uma Curitiba dos anos de 1980. É incrível a capacidade artística desse profissional gráfico paulistano radicado na Capital paranaense desde o ano 2000. A cada novo trabalho, esse desenhista consegue desenvolver um traço único e original.

No momento, Caliman está dedicado a “Era uma vez no Contestado”, uma graphic novel feita toda em aquarela que deve ser lançada em 2024.

Edição é uma publicação da Quadrinhópole (Foto: Cristiano Martinez)

CENÁRIO
No Brasil, Curitiba é uma das cidades com maior volume de produção na Nona Arte. Não à toa, é palco da Bienal de Quadrinhos, maior evento da área no Sul do país.

Nesse sentido, “Uma moeda ou um beijo” surge como um dos grandes lançamentos de 2023 no cenário paranaense. Inclusive, durante a Bienal muitos artistas elevavam essa graphic novel ao posto de melhor obra até aqui da Quadrinhópole, uma casa que abriga títulos em torno de O Gralha, Undeadman, Clássicos Revisitados… ou seja, não é pouca coisa.

De fato, a narrativa em torno de Gilda é de uma complexidade temporal das mais interessantes: alterna o presente dos fatos (ano de 1983) com situações do passado, para ir fundo na história filtrada pela ficção dessa personagem tão misteriosa quanto fascinante.

No posfácio, Leonardo Melo explica que a ideia de “Uma moeda ou um beijo” surgiu de uma vontade de falar da Curitiba dos anos de 1970/80. Conversando com alguns amigos, ficou sabendo da história da famosa Gilda, uma figura que não é da sua geração. Apesar da importância, ele não tinha segurança sobre escrever a respeito de um universo de que não conhecia, que era de prostitutas e travestis.

“Mas então me ocorreu que eu poderia criar uma história de detetive, com Gilda no centro e a transformação da cidade como pano de fundo. Fato e ficção se misturando, algo que eu sempre quis fazer, mas nunca havia encontrado o tema correto”, diz no posfácio.

MOTIVAÇÃO
O que teria acontecido com Gilda? O gibi de Melo e Caliman chega a uma possível motivação que, claro, não será revelada nesta resenha.

No entanto, é mais importante saber que a cidade tem culpa no cartório. Cada personagem que circula nessa narrativa, incluindo o detetive Davi, é de alguma maneira responsável pela morte de Gilda. Seja pelo descaso, seja pelo preconceito.

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