Jornaleiro tem razão: ‘não folhear’! Confira resenha sobre ‘Do Contra – Herança’ (aviso de SPOILER!!!)

Recém-lançada, 41ª Graphic MSP é estrelada pelo Do Contra, personagem coadjuvante nos gibis da Turma da Mônica. Mas na HQ criada e desenhada pelo paranaense Yoshi Itice, esse descendente de japoneses e brasileiros ganha outra dimensão em uma história que discute ancestralidade, lugar no mundo e diversidade

É incrível como o selo Graphic MSP possibilita ao leitor e à leitora perceber novos ângulos para os conhecidos (e outros nem tanto assim) personagens criados pelo escritor, empresário e desenhista Mauricio de Sousa. Sim, ele mesmo, a mente por trás da Turma da Mônica, sucesso há décadas no mercado nacional de quadrinhos.

Quando as HQs dessa série especial, criada em 2013 com “Astronauta – Magnetar”, acertam, torna-se possível tirar protagonistas e coadjuvantes das sombras e enxergá-los de outro modo.

Isso acontece agora com a recém-lançada 41ª Graphic MSP: “Do Contra – Herança” (ed. Panini), escrita e desenhada pelo designer gráfico paranaense Yoshi Itice, neto de brasileiros e japoneses. Tal como seu protagonista (que é um personagem secundário nos gibis da Turminha e ama discordar).

Não por sinal, temas como ancestralidade, lugar no mundo e diversidade compõem o miolo principal desse volume, cujo objetivo é reimaginar o universo criado por Mauricio. Neste caso, uma figura que estreou em agosto de 1994 na editora Globo. Do Contra apareceu pela primeira vez em uma HQ escrita por Rosana Munhoz, desenhada por Julio Sergio Mauricio e com arte-final de Kazuo Yamassake.

A inspiração para o personagem foi outro filho do famoso quadrinista, Maurício Takeda e Sousa. “Porque, desde menino, ele, quando via alguém fazendo coisas sempre da mesma maneira, decidia experimentar realizar aquilo de outro modo, só para ver o resultado”, diz o texto encartado nos extras da Graphic MSP.

Em outras palavras, Do Contra representa o inconformismo e a busca por outro caminho, que pode não ser o mais assertivo, mas é diferente.

É justamente esse aspecto que Itice explora em sua graphic novel dedicada ao personagem. Na história, “Do Contra encara, do seu jeito bem particular, as dificuldades de se identificar com o complexo mundo à sua volta. Afinal, ele é brasileiro ou japonês? Ou os dois?”, diz a sinopse oficial.

LUGAR NO MUNDO
A partir desse mote, Itice discute o lugar no mundo para o protagonista, que no meio de crianças ditas “brasileiras” (taí outra discussão) é chamado pejorativamente de “japa” e sofre perseguição; mas na cultura nipônica, é visto como brasileiro, porque tem um pai que não é descendente de japoneses.

Na contracapa da edição, o jornalista e professor Leonardo Sakamoto chama atenção para esse sentimento de quem não se encaixa em nenhum dos dois mundos e sente-se oprimido por eles. “E que, ao questionar os dois, questiona a si mesmo”.

Em resumo, Maurício Hiromashi (nome verdadeiro do personagem principal nessa HQ) vive na corda bamba entre as culturas japonesa e brasileira. Não por sinal, a graphic novel se chama “Herança”, ou seja, aquilo que se herda, podendo ser um conjunto de bens espirituais, obras ou ideias que se recebem dos pais, das gerações anteriores, o tal legado.

Só que Do Contra, como é da sua índole, quer fazer do seu jeito. Por exemplo, na escolinha japonesa, se recusa a aprender o idioma de seus antepassados por parte de mãe e provoca a professora, a “sensei”. Já no futebol, inventa uma posição e um estilo de jogo que vão contra as regras desse esporte adotado pelo Brasil e tão popular em terras tupiniquins.

Assim, o desafio do protagonista é encontrar seu caminho no mundo, ou melhor, criar a sua estrada levando em conta a sua origem. Para isso, precisa ser flexível e achar um meio-termo.

Página da HQ (Foto: Reprodução)

NARRATIVA
O estilo de narrativa tem um tom de anime, com cenas explosivas, coloridas e ritmo ágil. Seu autor elabora um quadrinho que é ao mesmo tempo divertido na composição e profundo na abordagem temática.

Além de repleto de referências à cultura oriental – que somente um nikkei vai sacar, em algumas passagens – e aos volumes anteriores do selo Graphic MSP.

SELO
O germe do selo Graphic MSP ocorreu em 2009, quando o editor Sidney Gusman, o Sidão, comandou o projeto “MSP 50”, uma trilogia de edições especiais (hoje conhecidas pelas capas em amarelo, azul e vermelho) em que quadrinistas convidados (entre desenhistas e roteiristas) elaboraram HQs curtas reimaginando personagens da galeria criada por Mauricio de Sousa.

Em 2013, surgiu a primeira Graphic MSP, “Astronauta – Magnetar”, de Danilo Beyruth. Sucesso de público e crítica, com uma visão sci-fi altamente elaborada e fluida do Astronauta (aquele da nave em forma de bola nos gibizinhos).

De lá para cá, já foram mais 40 volumes (contando com “Do Contra – Herança”) com edições especiais de histórias “fechadas”, nas versões capa dura e capa cartão. Mas sempre recheadas de material extra, contando as origens do personagem e os bastidores de criação da graphic novel. E, claro, HQs originais e marcantes.

Pelo selo, já passagem aventuras (com direito a trilogias em alguns casos) estreladas por Mônica, Cebolinha, Magali, Cascão, Franjinha, Jeremias, Xaveco, Bidu, Louco, Chico Bento, Capitão Feio, Penadinho, Anjinho, Turma da Mata, Piteco, Denise, Tina, Horácio, Turma da Mônica, Mingau…

Para a temporada de 2024, ainda o volume 3 estrelado pelo Capitão Feio, produzido por Magno Costa e Marcelo Costa; a sequência do Louco, com traço do paranaense Rogério Coelho; e ainda a estreia de Verônica Berta no selo, com sua releitura da personagem Marina.

NÃO FOLHEAR (AVISO DE SPOILER)
Sabe aquele conselho de todo bom e velho jornaleiro, de “não folhear”? Vale para “Do Contra – Herança”. A recomendação é de não folhear as páginas antes de começar a leitura, pois pode perder uma das grandes sacadas da HQ – atenção, aviso de spoiler nesta resenha!

A narrativa fica boa mesmo quando ela vira de ponta cabeça, literalmente. Numa sequência de quadrinhos, em página dupla, Do Contra cai e sai na outra ponta, ou seja, na parte inferior do gibi. Neste momento, o leitor e a leitora precisam virar a edição, mudando de leitura ocidental para oriental.

Em resumo, o gibi se torna um mangá. A forma capta o espírito contestatório do protagonista. Só isto já vale a leitura de “Herança”. Mas tem mais camadas de leitura em seguida.