‘Aos pés de um filme de Godard’ (‘Selvagem’)

Ícone da Nouvelle Vague francesa, o cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard faleceu nesta terça-feira (13), aos 91 anos de idade. Ao longo de sua carreira, ele dirigiu obras inventivas, iconoclastas e revolucionárias; e serviu de inspiração para letras de canções do rock

“O Eduardo sugeriu uma lanchonete
Mas a Mônica queria ver um filme do Godard”

Neste trecho da canção “Eduardo e Mônica”, o compositor Renato Russo (da Legião Urbana) cita o cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard, sinônimo de cinema cabeça, inventivo e iconoclasta.

Apesar de tudo isso, a obra desse diretor está presente em músicas populares (vide também “Selvagem”, dos Paralamas do Sucesso). Pudera, seus filmes ajudaram a revolucionar a linguagem cinematográfica a partir do final dos anos de 1950, quando eclodiu a Nouvelle Vague (“nova onda”, em tradução literal), movimento estético francês que renovou a indústria fílmica no século 20.

Nesta terça-feira (13), o nome de Godard está ainda mais em evidência. Ele morreu aos 91 anos de idade, deixando uma produção que influenciou gerações de cineastas.

“Em 1959, questionaria o cinema inteiro, com ‘Acossado’, sua retumbante estreia. Tudo era improvisado. Não havia roteiro. Pela manhã, o diretor tomava as notas sobre o que pretendia filmar naquele dia. Encerrava as filmagens quando entendia que a inspiração tinha acabado”, diz o crítico de cinema Inácio Araújo, em texto publicado neste dia 13 de setembro de 2022 no site da Folha de S.Paulo.

Em linhas gerais, a ideia da Nouvelle Vague, na corrente liderada por Godard, era desmontar a linguagem clássica do cinema, ou seja, inverter a lógica da narrativa linear, mais “certinha”, que tinha começo, meio e fim delineados. Os filmes godardianos não apresentavam uma história propriamente dita, pois eram mais situações aparentemente sem nexo.

O movimento teve ainda nomes como François Truffaut, Alan Resnais, Claude Chabrol, Agnès Varda e Éric Rohmer.

Cena de “Eduardo & Mônica”, filme de René Sampaio baseado em canção da Legião Urbana que cita Godard (Foto: Reprodução)

Outro ponto importante era a montagem, feita de maneira a incomodar o espectador, com passagens de cena perceptíveis e truncadas em cortes bruscos, câmera na mão e diálogos existenciais. Godard queria revelar os mecanismos narrativos, desmistificando a ideia de que na telona a realidade era reproduzida fielmente.

Com o passar do tempo, o diretor se aprofundou nesse rompimento estético, produzindo longas-metragens cada vez mais herméticos e rebeldes, feitos muitas vezes a partir de colagens.

Segundo Araújo, Godard experimentava. E chegou à TV, com as séries “Seis Vezes Dois”, de 1976, e “France, Tour, Détour, Deux Enfants”, de 1977. “A partir daí, seus filmes podem ser definidos, cada vez mais, por um novo gênero – o ensaio cinematográfico. Nem ficção, nem documentário, às vezes os dois, às vezes nenhum”.

FILMES
Godard trabalhou até os últimos dias de sua vida, produzindo uma obra extensa com mais de 40 longas em 70 anos de carreira.

No currículo, estão clássicos como “Acossado” (1959), “Viver a Vida” (1962), “Alphaville” e “O Demônio das Onze Horas”, ambos de 1965, “Week-End à Francesa” (1967), “Carmen” (1983), “Eu Vos Saúdo Maria” (1985) e “Adeus à Linguagem” (2014).

Em 2014, Godard ganhou o prêmio do júri do Festival de Cannes por “Adeus à Linguagem”. Em 2018, concorreu pela Palma de Ouro em Cannes com “Imagem e Palavra”, uma reflexão sobre o cinema e o mundo.

Além de vários Ursos em Berlim e Leões em Veneza, ele recebeu homenagens pelo conjunto de sua obra em premiações como o César, o Oscar e em Cannes.

Em março de 2021, então com 90 anos, ele anunciou que faria mais dois filmes antes de se aposentar.

Sua produção mais recente, “Imagem e Palavra (The Image Book)”, foi lançada em 2018 durante o Festival de Cannes.

BRASIL
No Brasil, um diretor influenciado por Jean-Luc Godard é o baiano Glauber Rocha (1939-1981). A partir dos anos de 1960, o brasileiro se tornou um ícone do Cinema Novo, vertente influenciada pela produção europeia, principalmente o Neorrealismo italiano e a Novelle Vague. O lema cinemanovista era “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”.

No caso de Glauber, um caso de anti-Hollywood até a raiz de seus cabelos cacheados, é possível ver a presença godardiana na construção das cenas, ao desnudar a montagem e revelar o mecanismo por trás do encadeamento dos planos. O baiano não queria saber de set de filmagens em estúdios ou artificialismos, preferindo o sertão e a luz estourada do sol. Eram tempos de “estética da fome”.

Assim como Godard, o brasileiro também caminhou para o hermetismo narrativo, compondo filmes como “Terra em Transe” (1967) e “A Idade da Terra” (1980).

*****Texto/Pesquisa: Cristiano Martinez, especial para correiodocidadao.com.br

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