40 anos de ‘Era uma vez na América’, filme com tons operísticos de Sergio Leone

Completando 40 anos em 2024, “Era uma vez na América” foge do script de faroeste da obra do italiano Sergio Leone. A história se passa no meio urbano e conta sobre gangsterismo de origem judaica nos EUA

Último filme dirigido pelo italiano Sergio Leone (1929-1989), “Era uma vez na América” (1984, EUA/Itália) é o único que não se passa no Velho Oeste dentro de sua cinematografia (“O colosso de Rodes” vale apenas como estreia solo, em 1961). Tal diretor ficou conhecido principalmente pelo estabelecimento do subgênero western spaghetti, graças à Trilogia dos Dólares e à obra-prima “Era uma vez no Oeste” (1968).

Mas esse filme que completa 40 anos em 2024 foge do script. Os atores Robert De Niro e James Woods vivem dois personagens de ascendência judaica que se tornam criminosos em uma Nova Iorque dos anos de 1920/30 e 1968. De jovens infratores a poderosos mafiosos, assim é a trajetória da dupla de protagonistas, ao longo de quatro décadas.

Em resumo, trata-se de um filme urbano, longe do Oeste bravio americano onde o cinema leoniano fez sua fama em tramas com homens duros e rápidos no gatilho. Porém, existe uma similaridade, já que tanto o faroeste quanto a fita de gângster, na visão de Leone, apresentam personagens consumidos pelo tempo em enquadramentos asfixiantes. Tudo isso temperado pela trilha sonora do maestro Ennio Morricone (1928-2020).

Ou seja, é possível dizer que “Era uma vez na América” poderia ser uma trama de bang-bang, com os mafiosos no lugar dos caubóis. Sem contar também o estilo leoniano de montar uma narrativa: distensão do tempo (geralmente marcado pela câmera lenta), passagens de passado/presente, close ups ao extremo, personagens à beira do abismo…

Por exemplo, a narrativa inicia no passado, quando David “Noodles” Aaronson (De Niro) escapa de ser morto e compra a passagem no primeiro trem disponível. Em seguida, ele olha para uma paisagem na parede da estação e o espectador é transportado para o presente no mesmo local. Mas com o protagonista velho, retornando para Nova Iorque décadas depois. Este é um caso típico de como Leone atravessa presente e passado em seus filmes.

Ao longo de “Era uma vez na América”, esse recurso se alterna entre dois tempos (ou mais vezes no próprio passado) para contar a história de ascensão e queda do bando de mafiosos liderado por Noodles e Maximilian “Max” Bercovicz (Woods). São dois amigos de adolescência no bairro judeu da Big Apple, o Baixo East Side, que se tornam os maiorais do crime organizado.

Mas também é a história de amizade de ambos. De como eles deixaram de ser aliados para seguirem caminhos opostos. Ah, e ainda tem o grande amor da vida de Noodles, Deborah (Elizabeth McGovern), como uma musa em sua redoma de vidro.

Não por sinal, a trilha composta por Morricone dedica um dos temas a Deborah, aspirante a artista no passado (vivida pela ainda desconhecida Jennifer Connelly) que se tornou uma estrela mundial no presente da narrativa.

“Meu filme é uma homenagem aos filmes americanos que eu amo”, disse Leone a Denise Worrell, correspondente da revista “Time” no Festival de Cannes, em 1984.

Em tempo, o roteiro do filme, que é assinado por Leone e outras mãos, é baseado no romance “The Hoods”, de Harry Grey.

Cena com Max e Noodles, em um dos cortes temporais (Foto: Reprodução)

ÓPERA
Geralmente, “Era uma vez na América” é classificado pela crítica como uma ópera ou epopeia do cinema europeu, ao se debruçar em 3 horas e 47 minutos de narrativa sobre uma faceta da história dos Estados Unidos. Neste caso, do gangsterismo de origem judaico (para fugir do velho estilo ítalo-americano).

Em 1984, a revista semanal “Manchete” utilizou matéria da “Time” sobre esse longa-metragem de Sergio Leone. O texto de quatro páginas resumiu como sendo um “filme grandioso, apaixonado, sem medidas e radical”, em que o diretor romano gastou 28 milhões de dólares à época para fazer “um verdadeiro conto de fadas da violência, com 225 minutos de duração”.

No entanto, havia um problema na produção de Leone revelando a intromissão do distribuidor, conforme essa reportagem. A “versão The Ladd Company” simplesmente ceifou o longa-metragem original, reduzindo para 2 horas e 24 minutos. Naquele ano de 1984, essa fita condensada era exibida em 894 cinemas nos Estados Unidos.

Segundo a revista, uma equipe chefiada pelo montador Zach Staenberg pôs em ordem cronológica a história do longa, suprimindo algumas das cenas de violência mais operísticas. A Ladd Co. tinha receio de outro fracasso em mãos, pois considerava a versão leoniana como uma “fantasia de auteur”.

“Achamos que o original de Leone era um filme maravilhoso. Mas a reação à pré-estreia nos fez repensar a situação”, disse o vice-presidente da Ladd Co., Jay Canter. Havia também o receio de ter apenas uma sessão por noite nas salas de cinema.

Já o filme feito segundo as especificações de seu diretor, com suas quase quatro horas de duração, estava em cartaz apenas em Paris, na França, com ótimas bilheterias, e Chicago, nos EUA. A reportagem o classificou de “filme alucinatório, soturno, arrastado”; e a versão picotada de “ágil, menos ambiciosa e audaciosa, dramaticamente mais coerente”.

Logo se vê a preferência da “Time” no texto de Richard Corliss. “Leone filmou a história ao estilo luxurioso, mítico, que desenvolveu em seus populares ‘spaguetti westerns’, com Clint Eastwood, e aperfeiçoou em ‘Era uma vez no Oeste’, um tributo glorioso, enlouquecido, feito por um estranho ao cinema clássico de Hollywood. Desta vez, porém, as personagens não são arquétipos grandiosos, empertigados. Noodles e Max, seus capangas e adversários, são figuras delgadas, perdidas em venalidade; e o filme de Leone, fiel ao tema, é frio, brutal e meditativo”, diz o texto publicado em português na extinta “Manchete”.

Mas o tempo, este elemento tão caro ao cinema leoniano, provou que a revista norte-americana estava errada. Mesmo nesse formato operístico, com seus problemas narrativos, a versão maior de “Era uma vez na América” é a mais acertada e fiel às ideias de Leone. Apenas o longa-metragem original consegue estabelecer o conflito das personagens e provocar angústia no espectador sobre o destino delas. Justamente por causa do tempo fora da ordem cronológica.

SONHO
A reportagem da “Time” observa também que “Era uma vez na América” seria um filme de arte europeu, já que raramente adquire a aceleração de um ágil produto hollywoodiano. Nesse sentido, o longa leoniano tem uma atmosfera de sonho, regado pelo ópio em várias cenas.

Aliás, sem querer dar um spoiler, o filme tem um final enigmático que gera dúvidas até hoje nos espectadores. Uma espécie de “sorriso de Monalisa”. Afinal, tudo teria sido um devaneio, um sonho?

SERVIÇO
“Era uma vez na América” está disponível em serviços de streaming para assinantes, como é o caso da Mubi e Star+.