A trama de violência, sexo e misticismo de “Lavagem”

Sexo, violência, misticismo religioso e uma dose cavalar de empoderamento feminino. Esses são os principais ingredientes de Lavagem (2015, Ed. Mino, 72 p.), pequena obra-prima em quadrinhos do ilustrador paraibano Shiko. O artista é o responsável pelo traço e roteiro.

Feita em preto e branco e com um traço cruamente realístico, a HQ tem um grande impacto visual sobre o leitor ao longo de suas mais de 70 páginas. Como é peculiar na obra do paraibano, a narrativa é montada com poucos diálogos e quadrinhos expressivos que quase não usam recordatórios. Aliás, o grande detalhe do gibi é a predominância do tom preto e dos desenhos simultâneos explodindo em gigantescas e fortes imagens na página. No conjunto geral é uma visão sombria da condição humana.

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Aliás, o estilo de Shiko não se limita apenas ao traço expressivo e chamativo; o que já seria fora-de-série na produção quadrinística nacional. O artista vai mais além ao engendrar uma temática forte numa trama de violência, sexo e poder. O mais interessante em tudo isso é que o paraibano apresenta uma personagem feminina degradada pelo marido e pela condição social de pobreza, mas que conseguiu dar conta da situação. É uma verdadeira cabra-fêmea (um trocadilho com a surrada expressão nordestina) que se empodera e proporciona uma reviravolta na história. É uma HQ oportuna para esses 16 dias de ativismo contra a violência de gênero, cuja campanha finaliza neste sábado (5), em Guarapuava, com a Marcha das Vadias.

Em resumo, Lavagem apresenta a história de um casal que vive em condições subumanas em uma casa paupérrima na zona rural no meio do nada, longe de tudo e, principalmente, da civilização. Enquanto o marido se identifica mais com os porcos criados pelos dois, a mulher viaja até um vilarejo para frequentar a igreja. No meio do caminho, quando utiliza uma embarcação para fazer o percurso, ela dá suas escapadinhas com um homem desconhecido. Em tempo: nem o lugar, o vilarejo ou as personagens são identificados durante a narrativa.

Inclusive, o que Shiko menos se utiliza é de uma linguagem ou construção ficcional ordenada e didática. Em geral, Lavagem apresenta o mundo sob o prisma do delírio e da caoticidade, com pouco lastro no universo que convencionamos chamar de real. Por exemplo, em uma das viagens periódicas da mulher, ela aparece em uma cena de sexo com aquele homem desconhecido. Mas, logo em seguida, aparece uma alucinação dela matando com um facão o amante, que tem agora uma cabeça de porco. Tudo isso em meio a um recordatório que emana mensagens bíblicas.

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Não por sinal, o misticismo religioso é outro componente da narrativa. Além das mensagens subliminares, o casal recebe a visita de um missionário, que vem trazer a palavra divina. Como a maré subiu, o visitante inesperado alega que isso é um sinal divino para ficar um tempo maior com o casal.

PALAVRAS DIVINAS
O homem da casa pouco se importa com a presença do missionário e reage com grosseria, ignorando o poderio do sermão pregado durante a estada do indesejado. Já a mulher fica hipnotizada com as palavras, que irrompem na narrativa, personificadas pelo trabalho gráfico de Shiko. À medida que o sermão penetra na mente da personagem, o missionário ganha um aspecto intimidador e controlador. Ele parece mais um verdadeiro demônio.

A mulher começa a imaginar o assassinato do marido, descrito como uma figura opressora, relapsa e machista. É quase como um ser animalesco, verdadeiro porco.

Uma das cenas fortes da HQ é o momento em que o casal discute e o marido age de maneira violenta. A reação da mulher é surpreendente já que marca seu momento de libertação da condição de assujeitamento vivido até então.

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Shiko

A narrativa abusa de imagens oníricas e extremamente sombrias. Sem definir um gênero específico, Lavagem tem ares de uma surreal história de terror, já que a ambientação tensa e sombria é típica de gibis nesse formato. Mas, por outro lado, a história desenvolvida por Shiko é uma experiência existencialista e social, levando o leitor a conhecer fragmentos de uma trajetória de opressão e violência.

É essa diversidade que torna a narrativa múltipla e passível de diferentes interpretações a cada nova leitura.

SERVIÇO
Lavagem (2015, 72 p.)
Roteiro e Arte: Shiko
Terror
Ed. Mino
R$ 44
Onde encontrar: loja virtual da Mino no Facebook

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SHIKO EM DOIS TEMPOS
Além de Lavagem, Shiko tem outros dois trabalhos independentes, um deles republicados pela pequena Mino. Aliás, essa é uma editora que tem feito um excelente projeto editorial fora do eixo, dando visibilidade a obras que dificilmente veriam a luz em casas maiores. Fora que o material gráfico é bastante caprichado.

Talvez seja mentira (2014)
Literalmente, este álbum é um panorama erótico. Shiko (com ajuda nos roteiros do seu irmão, Bruno R.) remete aos catecismos, aquelas publicações baratas de HQs pornográficas, comercializadas clandestinamente entre os anos 1950 e 1970, que tiveram como seu grande símbolo o carioca Carlos Zéfiro (1921-1992), pseudônimo do funcionário público Alcides Aguiar Caminha.

A edição é um show à parte, com páginas que se desdobram como uma sanfona para formarem narrativas independentes.

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Azul indiferente do céu (2013)
Fábula urbana sobre a violência e a banalização da morte na América Latina, ao reencenar os últimos momentos do ativista colombiano Héctor Abad Gómez, assassinado em 1987.

À exceção das cenas derradeiras, história quase sem nenhum texto ou diálogo. É contado de maneira experimental, apenas com a sucessão de quadrinhos nas páginas.

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Texto: Cristiano Martinez
Fotos: Divulgação