Miguel Sanches Neto classifica novo livro como ‘romance picaresco’

Em entrevista à reportagem, o escritor paranaense e professor universitário conversa sobre seu mais recente lançamento de 2022: “O Último endereço de Eça de Queiroz” (Companhia das Letras). É uma obra narrada pelo personagem Rodrigo S.M. (nome “sequestrado” de “A hora da estrela”), sujeito equivocado que cruza o oceano para beber na “civilização” portuguesa

Rodrigo S.M. é um sujeito equivocado. Ele acha que precisa estar em Portugal para sentir a “civilização” e escrever seu grande livro. Por isso, larga tudo no Brasil e parte além mar.

Se você pensou no clássico “A hora da estrela”, de Clarice Lispector… ledo engano. Apesar do mesmo nome, que é “sequestrado”, o personagem em questão é o narrador de outra obra, que promete entrar para o seleto grupo de romances memoráveis.

Trata-se de “O Último endereço de Eça de Queiroz” (184 páginas, capa de Caco Neves), lançamento de 2022 do escritor paranaense e professor universitário Miguel Sanches Neto. É uma publicação da Companhia das Letras.

Narrativa carregada de ironia e humor, o romance apresenta Rodrigo em busca de lugares e escritores lusófonos que correspondam aos cenários imaginados por ele. Como é o caso de Eça de Queiroz, autor de obras-primas como “A Cidade e as Serras”. No entanto, a realidade é outra.

Citando Ezra Pound (“todo escritor funciona como uma espécie de antena da raça”), Sanches Neto explica à reportagem que “O Último endereço de Eça de Queiroz” nasceu de sua percepção de como a nova geração busca a carreira de escritor, “se é que ela existe”, como uma forma de construir uma vida cheia de grandes aventuras e de sucesso. “É um romance na contramão da glamourização da vida do escritor, pois escancara suas vilanias em nome de uma miragem: a escrita como nomeada social. O narrador foi baseado em uma notícia que li, de um jovem que larga o emprego para fazer uma oficina literária e se tornar escritor. Se a pessoa quer ser escritor, arrume um emprego, qualquer um, e crie espaços de tempo para se dedicar à literatura”.

A seguir, confira a entrevista feita por e-mail com o autor paranaense.

Miguel Sanches Neto é escritor, pesquisador e professor universitário (Foto: Divulgação/Vilma Slomp)

Ao longo do romance, o narrador faz uma espécie de “tour literário”, visitando locais famosos de escritores portugueses (José Saramago, Eça de Queiroz etc.). Mas Rodrigo sempre se equivoca em suas ideias, em cenas que beiram o nonsense, o absurdo e o humor. Neste romance, Miguel, você preferiu enveredar por uma narrativa carregada de ironia e sarcasmo?
Este é um romance picaresco. Luiz Schwarcz, que leu os originais, até sugeriu que eu usasse este rótulo na capa. A cada livro, tento mudar o registro de linguagem, para não me repetir. Como entendo que vivemos um momento muito ruim da literatura, em que todos os personagens devem fazer e dizer aquilo que se espera deles, optei por um narrador que não tem nenhum caráter. Para ele não há limites, ele mente o tempo inteiro para si mesmo e para os outros. É um anti-herói que, aos poucos, vai tomando consciência de suas origens. Ele foge da vida interiorana no Brasil, partindo para Portugal, e só numa aldeia se encontra consigo mesmo. O momento exige um tratamento mais crítico dos personagens, que têm suas pequenas e grandes vilanias.

Em linhas gerais, “O Último endereço de Eça de Queiroz” estabelece ponte entre Brasil e Portugal, lançando um olhar para o cânone literário português. A impressão é de que quanto mais perto da cultura portuguesa, mais distante fica dos brasileiros. Pelo menos, do modo como Rodrigo se aproxima. É isso que lhe passa também?
Tentei compreender um movimento de ilusão que nos marca, a de que a grande literatura só ocorre na matriz da língua. O livro brinca com o falar lusitano, demarcando territórios. Sou um grande leitor de Eça, para mim o maior ficcionista lusitano de todos os tempos, porque o mais crítico em relação a Portugal, porque o mais próximo dos leitores brasileiros. Com Eça, a língua literária se aproxima de pessoas reais, então o encontro entre o narrador e Eça é uma forma de valorizar este vínculo entre as duas culturas. Rodrigo se descobre depois de ter um contato espiritual com Eça. É como se ele dissesse que a literatura portuguesa que nos representa é que a faz a crítica a Portugal, como é também a literatura brasileira que nos representa, a que faz a crítica ao Brasil.

Ao mesmo tempo que o livro se molda como um relato, com níveis de vozes, Rodrigo não produz obra alguma. Ele fica apenas bebendo, comendo, dormindo e passeando. É o paradoxo da literatura moderna, da autoficção? Ou seja, da experiência como um fim em si mesma.
Exatamente. Ele é o escritor sem obra, apenas com uma vida literária. É um modelo do escritor que nunca chega ao momento da produção, porque viver é mais urgente. Ele representa muito da má literatura de autoficção que tomou conta do país, baseada apenas na vida, quando literatura é sempre linguagem, conquista de um domínio linguístico com potência de significação. Viver é pouco para quem quer escrever.

Recentemente, você esteve na Festa Literária Internacional de Maringá (Flim). Como este tipo de evento movimenta o universo das letras? Hoje em dia, os escritores precisam participar de feiras, lançar livros, ministrar oficinas, escrever artigos/colunas, editar, traduzir… sobra tempo para se dedicar à literatura (produção/leitura)? Ainda mais com outras atividades, como no seu caso, professor universitário e reitor da UEPG.
Eu sempre escrevi exercendo outras funções. Durmo pouco e produzo muito. Tenho um perfil obsessivo. Então, tudo que é literatura me acrescenta algo, seja participar de um encontro, seja atuar em minha profissão, pois me coloca em contato com a tensões da vida real com pessoas reais. Agora, sei a hora em que devo me recolher, para escrever ou para não escrever. Neste momento, estou concluindo minha carreira de escritor para me dedicar a coisas que negligenciei ao longo de três décadas de trabalho muito intenso. Então ficarei cada vez mais ausente do debate literário. Sou um escritor em retirada.

O “Último endereço de Eça de Queiroz” é o seu último livro no universo literário? É a sua despedida da produção ficcional? Você vai se dedicar a outros tipos de produção escrita?
Planejei este como o último livro que escrevi. Tenho dois outros prontos, que são anteriores. Um romance, “Inventar um Avô”, que sairá em março de 2023, e um livro de contos inéditos que pretendo não publicar, se eu tiver caráter suficiente para isso. Não quero escrever mais em nenhum gênero, apenas cuidar dos livros já publicados. Estou tentando com isso encerrar minha carreira de escritor, tal como um jogador de futebol faz quando chega a uma idade.

AUTOR
Miguel Sanches Neto nasceu em 1965, em Bela Vista do Paraíso, Paraná. É autor de mais de trinta livros, entre romances, crítica, poesia, crônicas e contos. Dele, a Companhia das Letras publicou “A máquina de madeira”, finalista dos prêmios São Paulo e Portugal Telecom, “Chá das cinco com o vampiro”, “A bíblia do Che” e “A bicicleta de carga”.

Foto: Divulgação/Vilma Slomp

SERVIÇO
O livro “O Último endereço de Eça de Queiroz” está disponível nas versões impressa (R$ 64,90) e e-book (R$ 39,90). Para mais informações, acesse o site do Grupo Companhia das Letras.

*******Reportagem: Cristiano Martinez, especial para correiodocidadao.com.br

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