‘Você sabe com quem está falando?’

“Recentemente tivemos mais uma demonstração do autoritarismo cotidiano brasileiro, que nem sempre é evidenciado”

A história do Brasil mostra que sempre fomos autoritários. Voltamo-nos a personagens aparentemente messiânicos, que chegam em cima do cavalo com novas promessas, e nos deixamos seduzir por modelos passionais, como D. Pedro proclamando a independência.

Recentemente tivemos mais uma demonstração do autoritarismo cotidiano brasileiro, que nem sempre é evidenciado. O guarda civil municipal de Santos (SP) Cícero Hilário Roza Neto, ao exercer sua função e tentar aplicar uma multa por falta de uso de máscara ao desembargador Eduardo Siqueira, foi repreendido e, para nossa sorte, manteve-se firme.

A palavra “república” tem origem do latim res publica, ou seja, “coisa pública”. No entanto, a exclusão e o não reconhecimento de determinados grupos, ainda que com poderes oficiais, como o de Cícero, são grandes obstáculos para o rompimento do autoritarismo brasileiro e a instalação de uma “coisa pública” legítima, enfraquecendo o artigo 5º da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (…)”.

A famosa carteirada do “você sabe com quem está falando?” é mais uma representação desse fato social. O filósofo Mário Sergio Cortella diz, ironicamente, que “o único momento da vida em que podemos eticamente perguntar a outra pessoa se sabemos com quem ela está falando é quando estamos em estágios avançados de Alzheimer, incapazes de nos lembrarmos dessa resposta”. Basta observar que em outros países essa pergunta transforma-se em algo como “quem você pensa que é?”, extraindo de si o protagonismo e questionando que relevância a figura do outro realmente possui.

O desejo por certezas e respostas assertivas para nossos dilemas é natural da condição humana. E falando em história portuguesa, é muito menos trabalhoso esperar por um D. Sebastião – o sebastianismo é uma crença mística, propagada em Portugal logo após o desaparecimento de D. Sebastião, segundo a qual este rei, como um novo messias, retornaria para levar o país a outros apogeus de glórias e conquistas – que nos indique um caminho minimamente crível do que se aventurar na longa e trabalhosa jornada do autoconhecimento, cheia de dúvidas e contestações, fazendo humanamente valer o Princípio de Hamilton – na física, também conhecido como Princípio de Mínima Ação ou princípio do menor esforço.

A questão é que não podemos naturalizar e aceitar tamanha violência, que ofende e transgrede o limite da ética – que é justamente o limite do campo alheio. A ética pode e deve ser desenvolvida, afinal não nascemos com ela no nosso código genético. Educa-se para o que é certo e errado, para a integridade e para a retidão. Mas, para difundir e dar raízes a essa virtude, há sempre muito trabalho pela frente. É preciso olhar para a noção de justiça que passamos a adotar, que por vezes confunde-se com a ideia de vingança. A justiça é incapaz de fazer distinção entre as pessoas, é poderosa e, claro, justa nos seus valores.

Segundo a professora Lilia Schwarcz, dois dos grandes inimigos da república são a corrupção e o patrimonialismo: a dificuldade de separação entre o que é público e o que é privado. No Brasil, isso se torna um entrave na distinção dos nossos direitos e deveres – “aos amigos os favores, aos inimigos a lei” – Nicolau Maquiavel. Outro ponto importante é a dificuldade de reconhecimento dessa violência, notado, por exemplo, em inúmeras e genuínas guerras ocorridas, mas sutilmente denominadas de “revoltas”. É preciso atribuir e utilizar os nomes corretos aos fenômenos sociais que aqui ocorrem, pois enquanto houver tabus sobre essas discussões, pouco será possível aprofundar-se em sua efetiva resolução.

Talvez o primeiro passo para reduzir tal autoritarismo seja evidenciar as vítimas desse mal. Alinhado à maior visibilidade, é necessário investir na educação e em uma vontade real de que as pessoas reflitam, não aceitando decretos impostos por figuras messiânicas, mas construindo democraticamente soluções coletivas, para o bem comum.

Cargos como o do desembargador e as instituições às quais pertencem devem ser maiores do que os indivíduos que, temporariamente, os ocupam. De outro lado, a população deve reconhecer que com seus governantes possui contratos, e não relações paternalistas. “É preciso sair da tradição escrava de ser servido para uma tradição republicana de servir”, diz o professor Leandro Karnal.

Sabemos da urgência em encontrar soluções que ampliem os padrões éticos da nossa sociedade, mas há algo ainda mais basilar nessa construção: precisamos, todos nós, ter maior interesse pela coisa pública. A atenção sobre o que é de todos sempre precede a justiça e equidade.

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**********Letícia Sugai é sócia das empresas Veritaz Gestão de Riscos e Compliance e Gordion Consultoria. É presidente do Instituto Paranaense de Compliance (Ipacom) e criadora do Movimento “Integridade sempre vale a pena”

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