‘Vidas Secas’: 80 anos de histórias

Em 2018, a obra-prima da literatura ‘Vidas Secas’ completa 80 anos de histórias. Seu autor, Graciliano Ramos, escreveu uma página importante das letras brasileiras com seu estilo conciso e subjetivo

O crítico literário austro-brasileiro Otto Maria Carpeaux (1900-1978) analisava que Graciliano Ramos (1892-1953) queria eliminar os excessos de linguagem em seus escritos: o lugar-comum, a eloquência tendenciosa, as descrições pitorescas. Seria capaz de eliminar ainda páginas inteiras, eliminar os seus romances inteiros, eliminar o próprio mundo (no ensaio Visão de Graciliano Ramos).

No romance Vidas Secas (1938) o escritor alagoano talvez tenha atingido o grande momento desse projeto de prosa literária. Em pouco mais de 120 páginas (conforme a 59ª edição da editora Record), o velho Graça, como também era conhecido, compôs uma narrativa seca, dura e com poucos adjetivos. Mas sem perder a ternura ao contar a história sensível da família de Fabiano e sinhá Vitória pelo sertão brasileiro.

Em um ambiente inóspito e ríspido, marcado pelo cíclico flagelo da seca, o estilo enxuto de Ramos combina perfeitamente com os personagens duros e isolados da obra: Fabiano, sua esposa sinhá Vitória e os filhos menino mais velho e menino mais novo; sem contar a cachorra Baleia, que é um membro ativo da pequena família de retirantes.

Assim como a linguagem do livro é concisa e econômica, os protagonistas se expressam de maneira moderada e simples. Os quatro integrantes da família não têm grandes lampejos de diálogos e são até mesmo rudimentares em seu jeito de agir e falar.

Mas isso não quer dizer que Fabiano e companhia sejam desprovidos de inteligência ou capacidade cognitiva. O grande mérito de Vidas Secas é acompanhar as angústias, desejos e inquietudes de cada integrante do núcleo de personagens, com abertura inclusive para o ponto de vista da cachorrinha.

A cada capítulo ou episódio da narrativa, o leitor tem a possibilidade de conhecer o interior de Fabiano, sinhá Vitória, menino mais velho, menino mais novo e Baleia. Em termos técnicos, costuma-se dizer que é um processo de onisciência seletiva múltipla; ou seja, os pensamentos e sentimentos desses cinco viventes irrompem na narrativa, misturando-se ao narrador principal.

O escritor alagoano Graciliano Ramos (Arquivo/EBC)

TEMA

Desde o seu lançamento, Vidas Secas vem encantando gerações de leitores há 80 anos. O seu grande plano de fundo é o mecanismo de funcionamento da indústria da seca, que corrói gente como Fabiano e sinhá Vitória ao lhe negar um ambiente adequado de vivência.

Nessa perspectiva, o romance de Graciliano Ramos poderia ser apenas um manifesto marxista contra a exploração do homem pelo homem. A despeito do viés ideológico, a obra-prima do velho Graça poderia se tornar um livro meramente datado e sem relação com os leitores de hoje. Por mais que a indústria da seca continue de pé.

Por isso, Vidas Secas vai mais longe ao dar foco às angústias do homem e não apenas às relações de opressão. O que interessa à narrativa é vasculhar o interior de personagens assombradas com um mundo que elas não conseguem compreender.

Na planície avermelhada, os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos.

– Trecho do livro ‘Vidas Secas’

Por exemplo, ao longo do livro Fabiano é enganado pelo dono das terras onde trabalha; e ainda apanha (sem motivo aparente) de um soldado. O objetivo do vaqueiro não é fazer um levante popular e liderar uma revolução socialista contra os mecanismos de opressão do capitalismo.

Tudo o que Fabiano quer é entender o porquê de ser mal tratado tanto num caso como no outro. Só isso. Em seu exterior, o personagem se comunica por meio de interjeições, frases curtas e resmungos; mas, em seu interior, aflora um mundo vasto e rico, dominado pela confusão em relação a tudo.

Esse mesmo tipo de assombro também é desenvolvido em relação às outras personagens da trama. Até mesmo o cão tem os seus momentos de dúvidas e incompreensão.

Ilustração de Aldemir Martins (Reprodução)

ESTRUTURA

O estilo de eliminação do próprio mundo, conforme as sábias palavras de Carpeaux, pode ser identificado também na estrutura do livro. Para muita gente, Vidas Secas é um romance desmontável, feito com base em capítulos independentes e sem ligação direta entre eles.

Muitos leitores já tiveram a experiência de ler os capítulos como se fossem contos. Ou seja, uma estrutura autônoma e sem linearidade. É como se Ramos tivesse eliminado a própria ideia de romance.

Aliás, cada capítulo (ou conto) é dedicado a uma das personagens do livro ou episódios.

CONTEXTO

Na historiografia da literatura brasileira, a obra de Graciliano Ramos é vista dentro do Modernismo, em especial o Romance de 30. É uma fatia da produção ficcional que engloba autores como Jorge Amado e José Lins do Rego.

Ao contrário da primeira fase modernista, o Romance de 30 buscava em geral uma narrativa direta e social, com tintas biográficas (caso de Zé Lins) e socialistas (Amado). Os livros do velho Graça destoavam de sua época, ao investir em temas como a incomunicabilidade e a subjetividade.

Além de Vidas Secas, o alagoano escreveu também São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Memórias do Cárcere (1953), entre outros.