Será o fim da violência institucional contra crianças e adolescentes?

‘Eram vítimas de violência institucional, nos casos em que o Estado, por qualquer um de seus agentes/serviços, exigia desnecessariamente a repetição dos relatos por falta de comunicação e articulação. Quem deveria auxiliar na recuperação da vítima e respo

Crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, negligenciados também pelo Poder Público, que insistia que contassem repetidamente seus traumas aos mais diversos serviços, muitas vezes em ambientes inadequados para a idade, ficavam condenados ao cárcere privado de suas lembranças mais tristes.

Eram vítimas de violência institucional, nos casos em que o Estado, por qualquer um de seus agentes/serviços, exigia desnecessariamente a repetição dos relatos por falta de comunicação e articulação. Quem deveria auxiliar na recuperação da vítima e responsabilizar o criminoso, em outro plano, também acabava por ser o violador de direitos.

Felizmente, essa pode ser uma era que está ficando para trás! Atenta aos diplomas internacionais e boas práticas nacionais, a Lei Federal nº 13.431/2017, que passa a valer a partir de 5 abril deste ano, estabelece um sistema de garantias de direitos para proteger crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência e, para tanto, orienta a rede de proteção (que reúne principalmente órgãos de Saúde, Assistência Social, Segurança e Justiça) a promover atendimento interdisciplinar e especializado.

Ela elenca as formas de violência das quais crianças e adolescentes devem ser protegidos e exige atendimento especializado, prioritário, célere e cooperativo entre os profissionais, que respeite a intimidade e evite oitivas sucessivas e repetidas.

Com tal finalidade, a nova lei cria dois mecanismos para escuta, os quais devem ser realizados com auxílio de psicólogos ou assistentes sociais e com a maior brevidade possível, em local apropriado e acolhedor, que garanta a privacidade. Em situações que justifiquem a excepcionalidade, a lei faculta a realização dessa forma de oitiva também para vítimas e testemunhas de violência entre 18 e 21 anos de idade.

O primeiro deles é a escuta especializada, definida como o procedimento de entrevista perante órgão da rede de proteção, tais como Conselho Tutelar, Centro de Referência Especializada de Assistência Social (Creas) e Unidade Básica de Saúde. A partir do conhecimento da violência, os técnicos devem se organizar de forma a pesquisar o trauma sofrido no limite do necessário, para possibilitar o atendimento especializado (de saúde ou assistencial, por exemplo), comunicando-se entre eles, para que a vítima não tenha que repetir, perante outro órgão ou em outra esfera, o mesmo triste acontecimento.

Ilustrando a positiva mudança, o Creas, quando realizar a escuta especializada, deverá, desde logo, repassar à Unidade Básica de Saúde as informações pertinentes ao diagnóstico, visando evitar que, durante a entrevista médica, o paciente tenha que relatar novamente os fatos.

A segunda forma, focada na responsabilização penal do agressor, denominada depoimento especial, consiste no procedimento de oitiva perante a autoridade policial ou judiciária, que deve, sempre que possível, ser realizado uma única vez e como produção antecipada de prova judicial, garantindo-se a ampla defesa do investigado. Na hipótese de criança ou adolescente menor de sete anos de idade ou no caso de violência sexual (em qualquer idade), deve ser realizado, obrigatoriamente, como produção antecipada de prova judicial.

Com a produção antecipada da prova (realizada com a presença do juiz, do promotor de Justiça e da defesa na sala de audiências e com a vítima/testemunha em outro ambiente, acompanhada de profissional capacitado), evita-se a repetição da oitiva, já que não será necessário reproduzir o ato durante a ação penal, devendo a autoridade policial solicitá-la, e o Ministério Público requerê-la, tão logo tenham ciência.

Afasta-se, por exemplo, uma primeira oitiva no âmbito da investigação policial, que seria repetida na fase da ação penal, meses ou anos depois do fato, prejudicando o desenvolvimento e a estabilidade psicológica de crianças e adolescentes, que não tinham o direito ao esquecimento e viam obstada sua recuperação, pois eram revitimizadas com sucessivas oitivas.

Com tais avanços, finalmente será respeitada, na integralidade, a condição peculiar e em desenvolvimento de nossas crianças e adolescentes como sujeitos de direito e não meros objetos de provas, sem se descuidar da prova indispensável para alcançar a verdade e assim não prevalecer a impunidade.

 

*****David Kerber de Aguiar é promotor de Justiça que atua na área da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Paraná em Araucária