Os 12 meses dourados do trabalho comunitário em Entre Rios
A simbologia maior da construção comunitária ocorria durante a cobertura das casas. Dezenas de vizinhos se juntavam em uma longa corrente para levar as telhas, de mão em mão, escada acima, acelerando a finalização do imóvel. Era o empenho comunitário a pr
Eram quatro horas da manhã na Colônia Vitória. O inverno rigoroso no terceiro planalto paranaense era tudo, menos confortável para as quatro mulheres suábias, que se deslocavam no escuro em direção a um riacho próximo. Elas precisavam de água limpa, a fim de preparar o café da manhã para os 221 conterrâneos recém-chegados a Entre Rios. Para que conseguissem carregar dois baldes de 20 litros cada e otimizassem o frete, elas dispunham de uma moderna tecnologia: um resistente e longo pedaço de madeira conhecido formalmente pelo termo técnico de bastão.
Além do esforço físico, elas tinham como companhia o medo dos ainda desconhecidos animais silvestres da localidade. Ouvia-se falar em gigantescos touros, em ariscos gatos selvagens, em sapos enormes que coaxavam com a força de um choro de bebê e até em perigosíssimos tigres, sempre à espreita. Mas o tempo era curto demais para tais preocupações. Assim que a matéria-prima fundamental para o cozimento, o preparo do pão e a lavagem da louça chegava à cozinha do barracão, o café da manhã começava a ser preparado. Às 6h30 estava tudo pronto para que pudesse ter início mais um dia de trabalho comunitário.
Entre os diferentes motivos que levaram ao sucesso do minunciosamente e bem arquitetado projeto de constituição da colônia de imigrantes dos Suábios do Danúbio em Entre Rios, o esforço em comunidade encontra-se no topo da lista. Ainda na Áustria, antes de embarcar para o Brasil, cada cooperado assinava sua filiação à Cooperativa Agrária. Naquele momento, sabia que se dedicaria durante os 12 meses seguintes à construção coletiva da nova pátria. Em contrapartida, todos seriam remunerados por soldos diários, sendo que parte dos valores seria retida, como início da quitação das dívidas relativas às terras, à casa, ao transporte e às demais despesas inicialmente arcadas pela cooperativa.
Quem já jogou SimCity ou outro aplicativo mais moderno a simular a construção de uma cidade, tem uma vaga noção do que significa começar um projeto habitacional do zero. Agora, apostar o próprio futuro e o de sua família em uma empreitada pioneira, com poucas garantias de sucesso, além da certeza de penoso empenho, só pode ser classificado com um termo: coragem. Por conta disso, o trabalho comunitário caiu como uma luva, inclusive no aspecto psicológico. De um lado, os novos colonos percebiam que participavam de algo grandioso, cercado de esperança; por outro, sorviam o alívio promovido pelo sentimento de pertencer novamente a um grupo coeso e hegemônico, depois de anos sendo tratados como minoria muitas vezes indesejável.
Cada novo suábio que desembarcava no transporte seguinte se impressionava com os avanços, em relação às últimas notícias recebidas, e logo se colocavam à disposição para cooperar. As cantorias durante o trabalho serviram também para que famílias até então desconhecidas se aproximassem, amizades e amores florescessem e a nova população de Entre Rios se estabelecesse
Assim, o mesmo povo que transformou banhados do Leste Europeu em referência produtiva do Velho Continente, voltou a arregaçar as mangas para tornar o campo bruto de Guarapuava em seu novo ganha-pão. As demandas gigantescas incluíram a construção das barracas comunitárias (para receber os próximos transportes), de estradas e pontes, das casas, a preparação da terra. Paralelamente, erguiam-se as instalações da própria Agrária e suas unidades produtivas. Sem distinção entre homens e mulheres, todos entregaram-se à efetivação do sonho de uma nova morada, sete anos após se enxergarem sem pátria por conta da Segunda Guerra Mundial.
Diariamente, às 7h da manhã, todas as pessoas aptas a trabalhar recebiam suas atribuições. Eram tarefas repetitivas, fisicamente cansativas, como abrir novas estradas com enxadas, carpir e virar a terra de dezenas de hectares ou carregar e descarregar toneladas de madeira, pedras, telhas. Algumas máquinas executavam as atividades mais brutas, mas a construção das 500 casas de madeira era um exemplo de esforço basicamente manual.
Ainda assim, os relatos acerca desse momento único na história de Entre Rios dão conta de que a harmonia imperou. Fosse durante o trabalho, fosse ao anoitecer, mulheres gostavam de cantar músicas trazidas apenas na memória e os homens tocavam de ouvido instrumentos que se salvaram dos conflitos e das diversas viagens. Assim, as longas jornadas de preparação e adubação da terra, a semeadura e a posterior colheita, tudo realizado com mãos calejadas pelo árido destino, transcorriam de forma não apenas tranquila; o orgulho comunitário, a consciência de que se escrevia a história, sobrepujava qualquer ansiedade.
Cada novo suábio que desembarcava no transporte seguinte se impressionava com os avanços, em relação às últimas notícias recebidas, e logo se colocavam à disposição para cooperar. As cantorias durante o trabalho serviram também para que famílias até então desconhecidas se aproximassem, amizades e amores florescessem e a nova população de Entre Rios se estabelecesse. Não se trata de romantizar momentos de intensa angústia e incerteza, um fardo físico e psicológico que todos carregavam. Mas de enaltecer a engenhosidade do projeto e a característica otimista e alegre do povo suábio, que sublimou o senso coletivo a ponto de sentir nostalgia de uma fase que poderia ter sido apenas visto pelos olhos do sofrimento.
Provavelmente, a simbologia maior da construção comunitária ocorria durante a cobertura das casas. Dezenas de vizinhos se juntavam em uma longa corrente para levar as telhas, de mão em mão, escada acima, acelerando a finalização do imóvel. Era o empenho comunitário a precipitar o sonho que já parecia impossível: o de voltar a ter um lar.
Dos 68 anos de história que os Suábios do Danúbio de Entre Rios comemoram agora em maio, por apenas um eles viveram a obrigação formal do trabalho comunitário. Dali em diante, cada família deveria tocar seus negócios de forma independente, ainda que continuassem a se ajudar mutuamente, sempre com o apoio do sistema cooperativo. Ainda assim, lembranças de profunda nostalgia e orgulho nasceram e permaneceram eternamente vinculadas a esses 12 meses dourados de coletividade.
*******Klaus Pettinger é jornalista, escritor e o autor do romance ‘O Sumiço do Hanomag’. Neste espaço, ele conta semanalmente curiosidades e fatos históricos sobre a colônia suábia de Entre Rios. Para contato com o colunista: [email protected]; Facebook: klauspettinger