Fazer novo uso das coisas

‘Todavia, com a mesma pureza e espontaneidade das crianças, a saída seria se conseguíssemos um ‘meio sem fim’, um fazer concentrado tão somente no fazer e não um mero politicamente correto, tão artificial no tempo em que escrevo ou um viver essencialmente

A grande sacada para os que advogam em favor da humanidade é não contrapor-se frontalmente ao sistema, mas agir de forma diferente, ou seja, fazer novo uso em uma certa marginalidade que nos permita estar no jogo mesmo sem concordar com as regras. Trata-se hoje de uma nova revolução, sendo esta muito mais incômoda do que qualquer outra, uma vez que ela [ esta nova mentalidade ] parece ser o único e último reduto daqueles que acreditam em uma política que vem e/ou em uma sociedade que vem. Para exemplificar esta nova e incomum postura [ novo uso das coisas ou reinvenção ] que nos imuniza diante de tantas catástrofes no tempo presente, o filósofo italiano Giorgio Agamben cita uma metáfora sobre o comportamento das crianças [ sempre lúdicas, espontâneas e naturais ] diante das coisas que passam a ter acesso. Para Agamben, tudo que chega à criança passa a ser usado como criança, ou seja, sua capacidade de transformar coisa séria em brincadeira é algo profundamente revolucionário e tem potencialidade para fazer a diferença em dias tão escuros. Assim, para que a humanidade continue a viver em tempos de soberania avassaladora do capital sobre o humano, não se trata de ser negligente, desatento ou de negar por negar. Talvez a saída possa ser exatamente isso, não levar a sério o oficial fazendo um uso diferente das coisas [ um uso particular ou um novo uso ]. A dificuldade está exatamente em ‘fazer novo uso’ sem ser conformista ou meramente um transgressor. Dito de outra forma, é raro alguém agir sem uma finalidade, sem um propósito, sem um interesse. É quase impossível, afinal ‘somos humanos, demasiadamente, humanos’. Todavia, com a mesma pureza e espontaneidade das crianças, a saída seria se conseguíssemos um ‘meio sem fim’, um fazer concentrado tão somente no fazer e não um mero politicamente correto, tão artificial no tempo em que escrevo ou um viver essencialmente focado no viver.

Deste modo, tentando analogamente pensar Agamben na contemporaneidade no que diz respeito às organizações públicas e privadas, seria pensar o social com um novo uso, seria pensar o econômico com um novo uso, seria pensar as relações como uma nova relação e, é claro, pensar a natureza com uma nova natureza e não esta que apenas degrada, que apenas depreda, que apenas suga e que apenas descarta. Lamentavelmente, estamos habituados e condicionados a compreender o conceito de trabalho humano numa visão meramente econômica, assim como estamos contaminados com a tese de que o mercado pode resolver naturalmente o problema da humanidade. Urge que voltemos a pensar que apenas uma nova forma de vida pode nos tirar deste mutismo e da idiotice de uma biografia individual sem nenhum sentido. Habermas, o ainda vivo filósofo alemão estava totalmente certo quando escreveu: Envergonhe-se de morrer até que você tenha alcançado uma vitória para a humanidade.

 

*******Claudio Andrade é doutor em História e Sociedade pela Unesp e professor associado do Departamento de Filosofia da Unicentro, em Guarapuava. Além de presidente da Academia de Letras, Artes e Ciências de Guarapuava (Alac)