Capaz que os alemães da colônia não falam alemão?!
‘Em Entre Rios, os alunos têm a possibilidade de aprender alemão desde o jardim de infância. Os mais dedicados têm, inclusive, a oportunidade de ler e compreender, no original, os maiores filósofos alemães da história, como Weber, Merkel, Vettel e Thomas
Uma febre toma conta da juventude suábia em Entre Rios. E não é de hoje. Tampouco é uma pirexia para a qual o doutor Bira recomendaria 40 gotinhas de dipirona. A coluna teve acesso exclusivo a documentos que comprovam: jovens e adultos têm trocado mensagens em uma língua desconhecida. Ou nem tanto, uma vez que a galera está se entendendo. Pelo menos, em parte. Trata-se do Schwäbisch, o dialeto praticado pelos Suábios do Danúbio desde quando nasceram, oh, joi mene, leit, wie liewas Mädl! (segue tradução juramentada: oh, meuDeusdocéuquefofuxa.)
Mas o suábio e o alemão são a mesma coisa? Não, nein, na. O primeiro deriva do segundo, mas há diferenças consideráveis. Sabe-se, por exemplo, que o interesse pelo estudo do idioma alemão tem crescido em todo o planeta. Por sinal, trata-se de mais uma forma de autoflagelo, que foge à compreensão de psicólogos e tem despertado a atenção da Organização Mundial da Saúde. É fácil imaginar um celibatário que viu, sem querer, a foto da Miss Pretzel durante o cursinho e, como penitência, começou a ler Os sofrimentos do jovem Werther, de Johann Wolfgang von Goethe, e, simultaneamente, a assistir aos três jogos da seleção de Joachim Löw na Copa de 2018, com narração de Galvão Bueno, em alemão (Schau, das Tor! Schau, das Tor!).
Já o dialeto suábio, que só é repassado de geração para geração, difere substancialmente do alemão ensinado na escola. Não é só uma questão de sotaque. Se o mapa da Alemanha fosse o do Brasil, o cearense não entenderia o gaúcho, e vice-versa. De modo que uma pessoa nascida no norte da Alemanha, por exemplo, tem grande dificuldade em compreender o dialeto suábio – mas só até a segunda cerveja.
Em Entre Rios, os alunos têm a possibilidade de aprender alemão desde o jardim de infância. Os mais dedicados têm, inclusive, a oportunidade de ler e compreender, no original, os maiores filósofos alemães da história, como Weber, Merkel, Vettel e Thomas Müller. Já o dialeto suábio só existe enquanto for praticado. E foi por isso que o vírus da comunicação despertou a referida febre: os suabinhos de todas as faixas etárias deram de trocando mensagens escritas por zapzap, messenger e até e-mail.
E é aí que reside a curiosidade; e ela reside em uma mansão com enormes colunas linguísticas: a galera escreve e fala como bem entende, sem muitas regras, seguindo principalmente a fonética – aproveitando-se especialmente de grafias do alemão, mas, no caso dos mais jovens, também do ‘ã’ ou do ‘ó’ do português. E, bem, de algum modo, os diálogos fluem!
Como já abordado anteriormente, os Suábios do Danúbio são descendentes de uma das etnias que migraram do atual Sudoeste e Oeste alemão para os Bálcãs, no século 18. Durante duzentos anos, mantiveram vivas suas tradições de origem germânica, além de absorver aspectos culturais de outros povos daquela região. Com a Segunda Guerra Mundial, foram obrigados a deixar seus lares. Viveram na Áustria por sete anos, de onde trouxeram mais alguns souvenirs culturais relacionadas ao idioma e, por óbvio, à culinária. A páprica no caldo de todo esse Gulasch étnico é o Schwäbisch, preservado e praticado desde 1951 em Entre Rios.
Diante desse cenário, o dialeto oriundo do alemão continua a despertar o interesse de inúmeros profissionais de linguística mundo afora, inclusive no Brasil. Infelizmente, quase não se encontra mais similaridade com o caso de Entre Rios. Ao longo das últimas décadas, os Suábios do Danúbio se espalharam por todo o mundo e, com o passar dos anos e a expansão urbana, se integraram às comunidades em suas novas pátrias, deixando o dialeto materno, por assim dizer, em segundo plano. Ainda há localidades nas quais o Schwäbisch é praticado, mas dificilmente pelas novas gerações. A tendência natural é a extinção ao longo do tempo.
Diversos fatores contribuíram para que Entre Rios, por enquanto, seja exceção. Um deles é geográfico: por conviver em uma ilha fluvial, como o nome já diz, a comunidade suábia não foi aglutinada pelas cidades próximas. Soma-se a isso o ímpeto dos próprios descendentes em manter esse diferencial vivo.
Em muitas famílias, ainda é comum que se fale apenas em suábio, e não português ou alemão. Para essas pessoas, dirigir-se aos avós, pais ou filhos em português é algo absolutamente estranho, esquisito, de verdade – daí a predileção pelo dialeto, mesmo em locais públicos. Trata-se de um esforço inconsciente de sustentar um fenômeno linguístico de centenas de anos também em terras brasileiras.
É cada vez mais comum se ouvir palavras em português em meio às frases em dialeto. Todavia, é um processo natural, que inclusive explica o uso de expressões croatas, húngaras e romenas pelo suábio praticado em Entre Rios. Há relatos de que, na antiga Iugoslávia, os avós e bisavós da atual geração trocavam cartas em Schwäbisch. Da mesma forma ocorreu na Áustria, quando se aprendia o alemão com os professores, se falava o dialeto austríaco na rua e apenas entre os familiares se praticava o suábio.
Hoje, o estudo do alemão é formalmente incentivado e praticado em sala de aula, mas o dialeto continua sendo um sobrevivente nos redutos familiares dos Suábios do Danúbio de Entre Rios, potencializado pela troca de mensagens, escritas e faladas, entre amigos. Uma febre que nenhuma dipirona deveria ser capaz de dissipar.
************Klaus Pettinger é jornalista, escritor e o autor do romance ‘O Sumiço do Hanomag’. Neste espaço, ele conta semanalmente curiosidades e fatos históricos sobre a colônia suábia de Entre Rios. Para contato com o colunista: [email protected]; Facebook: klauspettinger