24 horas de aventura: 1ª excursão do Grupo de Danças a Curitiba
Naquele momento, em julho de 1953, ninguém ousou imaginar que a capital paranaense estava a quase 24 horas de distância. Talvez alguns até tenham começado a desconfiar um pouco, quando o caminhão não dava partida nem que o chucrute adocicasse. A missão er
Finalmente, os ensaios terminaram: chegou a hora do show. Pontualmente às quatro da manhã do dia anterior à apresentação, diante da antiga Pousada Schneider, na Colônia Vitória, o motorista deu o comando para todos subirem no caminhão. Curitiba não perdia por esperar para conhecer a desenvoltura dos dançarinos suábios de Entre Rios. Só não sabia que iria esperar tanto. Na verdade, naquele momento sob a penumbra do gélido inverno guarapuavano, ninguém ousou sequer imaginar que a capital paranaense estava a quase 24 horas de distância.
Talvez alguns até tenham começado a desconfiar um pouco, quando o caminhão não dava partida nem que o chucrute adocicasse. Da mesma forma como ordenou a subida, dois minutos depois o motorista deu o comando para a piazada descer e ajudar a empurrar. Sim, um caminhão. Tudo bem, era um caminhão pequeno da década de 50 do século passado. Mas não era um fusca.
Mesmo sob frio de julho de 1953, gotas de suor desprendiam-se e reluziam sob a luz do luar nas testas dos fortes jovens suábios. A missão era nobre, eles sabiam: viajar à capital do Estado para se apresentar durante as festividades de comemoração ao Dia da Imigração Alemã no Brasil, relembrado anualmente em 25 de julho. Mais do que isso. Era a primeira grande excursão do Grupo de Danças Folclóricas dos Suábios do Danúbio de Entre Rios, formado com o intuito de manter vivas em solo brasileiro as tradições trazidas da Europa.
Sob todos os ângulos, uma incumbência ilustre. Ainda assim, é provável que algum dançarino tenha proferido xingamentos de origem croata, húngara ou romena quando o caminhão enguiçou pela segunda vez, logo após sair das colônias de Entre Rios. É verdade que bons dez quilômetros já haviam sido heroicamente transpostos: faltavam… o quê? Uns 280 km? Bobagem, valia a pena, afinal. O que é empurrar um caminhão velho, perto do que fez Leopoldina Carolina Josefa Francisca Fernanda de Habsburgo-Lorena. Aliás, o que é embalar um trator numa subida perto de um nome desses?!
Admitamos, entretanto, a remota possibilidade de outro integrante ter, contraditoriamente, odiado por alguns segundos o fato de a ilustre Imperatriz Dona Leopoldina ter influenciado decisivamente a vinda de dezenas de milhares de alemães ao Brasil durante o século 19. Fato que, consequentemente, culminou na comemoração do dia 25 de julho, em referência à data da chegada da primeira leva de 39 imigrantes alemães ao Brasil, em 1824, os quais se instalaram na atual região de São Leopoldo (RS).
Aliás, estima-se que, até o final da década de 1970, cerca de 250.000 alemães e descendentes radicaram-se no Brasil. Motivo mais que suficiente para que se tenha, por exemplo, também a celebração anual da Semana da Língua Alemã – em 2019 com programação desenvolvida de 4 a 14 de abril, em todo o país. Ainda assim, é inegável que, se a peremptória arquiduquesa da Áustria não tivesse insistido na vinda de agricultores e artesãos alemães, além de dezenas de cientistas e estudiosos – após se instalar no país com a duvidosa honra de se tornar a primeira esposa do imperador D. Pedro I –, os dançarinos suábios provavelmente não estariam na tarde daquele fatídico dia correndo desesperadamente por pântanos e córregos à procura de água. Sim, porque agora o radiador do caminhão havia secado, em algum lugar entre o segundo pinheiro e a taça de Vila Velha.
Talvez seja mais condizente com a história justificar apenas que o veículo escolhido não estivesse em condições de viajar. E foi exatamente o que deve ter passado pela cabeça das dançarinas mais sensatas, quando o caminhão parou em outra oportunidade na via empoeirada, sem um metro quadrado de asfalto, com o motor fervendo com mais vigor do que caldeirão de Gulasch temperado com páprica picante. Era para ter sido outro caminhão, previamente alugado pela saudosa senhora Mathilde Petschel, longeva coordenadora do grupo de danças – e responsável por eternizar essa história em entrevista ao Museu Histórico de Entre Rios. Ocorre que, de última hora, chegou uma proposta mais barata para a viagem, praticamente irrecusável.
Irrecusável como a carona oferecida por uma alma caridosa a dois integrantes, quando o motor do caminhão suspirou pela última vez, antes de fundir a vida de todos, a apenas 40 quilômetros da capital paranaense. Já passava da hora do jantar e o objetivo era avisar aos integrantes alemães do Clube Rio Branco, organizador e local da apresentação, de que haveria um atraso irremediável.
Sentados há quase 24 horas lá atrás, na carroceria do caminhão, ao lado de inúmeras caixas repletas de trajes típicos, instrumentos musicais e pertences particulares, os demais dançarinos sentiram a presença da impetuosidade gélida de mais uma madrugada, muito antes de um ônibus salvador chegar para resgatá-los. Exaustos, os integrantes provavelmente nem se davam mais ao trabalho de pensar, apenas se concentraram em colocar todo o material do traiçoeiro caminhão no bagageiro do ônibus. Uma pena, pois poderiam ter inventado, naquele momento, o Dia da Irritação Alemã, se tivessem tido paciência para trocadilhos.
No dia seguinte, conforme planejado, a apresentação encantou os presentes ao Clube Rio Branco com danças, músicas e os esmerados trajes típicos. De toda forma, a viagem entrou para a história como a primeira em que o grupo folclórico suábio se apresentou longe de Entre Rios. E de forma inesquecível.
********Klaus Pettinger é jornalista, escritor e o autor do romance ‘O Sumiço do Hanomag’. Neste espaço, ele conta semanalmente curiosidades e fatos históricos sobre a colônia suábia de Entre Rios. Para contato com o colunista: [email protected]; Facebook: klauspettinger