O problema de Rubem Fonseca é viver à própria sombra. Ao lado de Carlos Heitor Cony (91 anos) e Dalton Trevisan (91 anos), Fonseca (com 92 anos) é um dos últimos escritores brasileiros daquela geração surgida no período de 1950/60. O grande mal da longevidade intelectual é ter o passado criativo à espreita, sempre utilizado como referência para avaliar os trabalhos mais recentes.
A despeito da idade nonagenária, todos esses três escritores não penduraram as teclas (seja de computador ou máquina de escrever, como é o caso de Trevisan) e se mantiveram na ativa. O principal deles é Zé Rubem (como também é conhecido), que publica um livro de inéditas a cada dois ou quatro anos. A cobrança dos críticos literários e resenhistas é dura, pois todos tomam como base o que o autor já produziu de mais relevante, principalmente nos anos de 1960, quando seus contos chamaram a atenção de leitores e pensadores.
Pois bem, é no gênero da narrativa curta que Fonseca se alça mais uma vez. Recém-lançado, Calibre 22 (2017, ed. Nova Fronteira, R$ 39,9) reúne 29 histórias inéditas do escritor mineiro radicado no Rio de Janeiro. O leitor aficionado pelo estilo fonsequiano tem um prato cheio: narrativa em primeira pessoa (quase 100% dos contos), linguagem direta e cinematográfica, personagens hedonistas e obcecados, taras e manias, humor negro, o uso do nome José e, claro, altas doses de violência.
Novo livro reúne 29 contos inéditos de Rubem Fonseca (Reprodução)
Se José Rubem Fonseca fosse um autor estreante, esse seria um ótimo livro no panorama contemporâneo da literatura brasileira. Mas o decano escritor tem o seu próprio passado para incomodá-lo.
PASSADO
Entre 1963 e 1979, o país ficou assombrado com a escrita brutalizada e subumana de Fonseca. Nesse período, seis livros de contos de sua autoria impressionaram leitores e crítica literária: Os prisioneiros (1963), A coleira do cão (1965), Lúcia McCartney (1969), O homem de fevereiro ou março (1973), Feliz Ano Novo (1975) e O cobrador (1979).
Ao mergulhar no submundo da sociedade carioca, Zé Rubem revelou um universo de tipos e personagens que transitavam entre a busca do prazer refinado e a ascensão da violência brutal. A bem urdida narrativa literária era marcada pela linguagem concisa e veloz, utilizada para descrever cenas explícitas de sexo, erotismo e crime.
Só pra se ter uma ideia, o livro Feliz Ano Novo foi proibido pela censura governamental, em pleno período de Ditadura no Brasil.
Moro num apartamento pequeno, mas confortável, e da janela do quarto vejo o mar. Tenho todo tipo de bebida, principalmente champanhe da melhor qualidade, as mulheres gostam de champanhe. (…) Minhas refeições, café da manhã, almoço e jantar, são sempre feitas na rua, em restaurantes, de preferência portugueses, acompanhadas de um bom vinho tinto – Trecho do conto ‘Calibre 22’
RENOVAÇÃO
Ao lado de escritores como Trevisan e Cony, Fonseca deu novas tintas à narrativa urbana brasileira no conto. Já no gênero literário do romance, o ex-comissário de polícia e executivo da Light não teve o mesmo reconhecimento; mas, mesmo assim, produziu excelentes livros: O Caso Morel (1973) e A Grande Arte (1983), só pra ficar em dois.
MANDRAKE
Por isso, torna-se difícil avaliar uma nova obra de Fonseca sem levar em conta todo esse histórico. De maneira geral, Calibre 22 tem altos e baixos, com destaque para a visão lacônica de Fonseca sobre o ser humano. Em alguns contos, ele apresenta personagens com gostos refinados; mas que são obrigados a lançar mão da violência para encontrar novamente seu ponto de equilíbrio. É como se o conhecimento humano sucumbisse a mais vil forma de reação, que é o instinto primitivo de matar.
Um dado positivo da nova coletânea é o retorno de Mandrake, personagem querido dos leitores e protagonista de contos e romances do passado literário de Fonseca. Advogado criminal da alta sociedade, José Mandrake (novamente, o nome José) é uma espécie de detetive das histórias policiais fonsequianas. A aventura inédita fecha o livro no conto Calibre 22.
O ator Marcos Palmeira viveu Mandrake em série do canal HBO (Divulgação)
Desta vez, Mandrake é contratado para investigar uma série de assassinatos relacionados ao dono de uma revista feminina. Apesar de seu trânsito na alta roda social, o advogado tem contato com figuras marginais, como é caso de policiais e bandidos. Inclusive, com direito a um anão chamado Nefelibata.
É um universo ao mesmo tempo de relações escusas e hedonismo. Mandrake tem gosto por belas mulheres inteligentes, charutos refinados (o cubano Partagás) e vinhos de alto calibre (o português Alvaralhão).
Ao final das contas, o mais importante não é saber quem matou quem; mas sim as vicissitudes das personagens, em especial Mandrake.
Texto: Cristiano Martinez
Foto (capa): Zeca Fonseca